De Susan Morgan, Bombay Anna é, indiscutivelmente, o desvelar de um mistério que a biografada e sua descendência quiseram sepultar. Bristowe, o maior conhecedor da vida de Leonowens já o dissera há muitos anos: essa Anna não era, não podia ter sido britânica de nascimento. Anna Leonowens, a famosa governanta do Rei do Sião que inspirou o clássico musical de Hollywood The King and I, com Deborah Kerr e Yul Brynner, era, afinal, uma pobre rapariguinha meia-casta nascida em Bombaim. O avô de Anna seria um desses deserdados de poucas letras nascido num qualquer deprimido pequeno mundo rural inglês de inícios da Revolução Industrial que Chegara à Índia sem eira e alistara-se como praça no exército da British East India Company. Ali conheceu na "Cidade Negra" (ou Cidade Nativa) uma rapariga Topass (1) - isto é, euro-asiática católica de ascendência portuguesa - com quem contraiu matrimónio. Desse casamento que teve desfecho na prematura morte do soldado, nasceu Mary Anne, mãe de Anna "Leonowens". Esta, casou aos treze anos com um sargento sapador, mas logo enviuvou. Desse casamento vieram ao mundo duas raparigas, tendo Anna [Harriett Edwards] nascido semanas após a morte do progenitor.
Leonowens construiu várias identidades ao longo da vida. Nas memórias que deixou, afirmou ter nascido em Gales no seio de uma família com cabedais e que o seu pai - "oficial do exército" - a mandara vir logo que concluída esmerada educação. Se Leonowens recebeu alguma educação foi nas escolas regimentais. Viva, curiosa e extremamente inteligente - falava fluentemente quatro línguas e chegou a ser reconhecida como autoridade em sanscritologia - era uma força da natureza. Compreende-se que, ao chegar a hora do triunfo e do reconhecimento - foi sucessivamente preceptora dos filhos de Rama IV do Sião, jornalista-viajante e conferencista, militante da causa abolicionista e no fim da vida uma líder sufragista - tentasse ocultar as suas raízes.
Casou Anna com um homem obscuro, oriundo da classe média irlandesa protestante dizimada pelas fomes de 1840. Este Leon Owens morreu prematuramente. Fora funcionáro público em Bombaim mas quis mudar de vida e candidatou-se a gerente de um modestíssimo hotel em Pinangue (Penang). Ao falecer naquela que era conhecida como a "tumba do homem branco", deixou mulher e dois filhos na maisextrema penúria. Eis uma revelação que Susan Morgan não desenvolve. Pinangue é uma ilha situada no estreito de Malaca. Pertencendo ao sultão de Kedah, foi comprada pela Honorable Company em 1786, passando a integrar as possessões dos Straits Settlements. Ali, o Capitão Francis Light, oficial da EIC lançou os caboucos de uma cidade (George Town). Pinangue era despovoada, pelo que Light trouxe da península malaia muitos "portugueses" de Kedah e Malaca. Casou com uma luso-descendente e Pinangue passou a ser mais um bandel católico das lusotopias asiáticas que floresceram nesta parte do mundo entre os séculos XVI e XIX. Parece que Anna quis apagar esse registo e essa ligação. Nascera em Bombaim no seio do enclave meia-casta católico, mudou-se para Pinangue, uma ilha de luso-descendentes antes de desembarcar em Singapura, a nova pérola da Coroa. Ora, Singapura era, também, uma cidade feita por portugueses. Quando Raffles aí se instalou e içou a Union Jack, convidou muitos luso-descendentes de Pukhet e Malaca, mas também de Pinangue. Parece que tudo bate certo, mas Anna não queria ser tida por católica, muito menos por euro-asiática.
Não se sabe exactamente como se insinuou junto do cônsul do Sião em Singapura, mas se o fez terá invocado o seu nascimento britânico, pois o lugar de professora de inglês dos filhos do Rei requeria uma dama, não uma pobre meia-casta. Compreendo, agora, as amargas, injustas e depreciativas palavras que Anna escreveu a respeito dos luso-siameses de Banguecoque. Queria varrer da memória as suas origens, não se queria com eles identificar. Era um medo profundo esse de poder ser descoberta por aqueles cujo contacto evitava; ou seja, aqueles que lhe lembravam a parte oculta da sua identidade e a sua origem mestiça.
Depois de alguns anos no Sião, mudou de ares e tornou-se uma celebridade dos salões e academias da América do Norte e Europa. Era já Madame Leonowens, rica, culta, influente, pelo que destruiu toda a documentação e inventou uma vida. Um seu sobrinho neto chegou aos píncaros da popularidade. William Henry Pratt passou à história com o nome artístico de Boris Karloff e ainda é, por antonomásia, o Drácula das fitas do cinema a preto e branco. Boris Karloff, sobrinho neto de uma pobre rapariga luso-indiana de Bombaim.
MORGAN, Susan. Bombay Anna: The Real Story and Remarkable Adventures of the King and I Governess. Los Angeles: University of California Press, 2008.
MORGAN, Susan. Bombay Anna: The Real Story and Remarkable Adventures of the King and I Governess. Los Angeles: University of California Press, 2008.
Mas que facto curioso. Mas "Karloff", Drácula não, Frankenstein.
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