terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Realismo lírico: amor proletário

Seis da tarde, Banguecoque. Dois trabalhadores da construção civil. Ele cabeceando de sono, um sono semi-acordado martirizado pelos solavancos do carro, pelo barulho do tráfego e pelo calor inclemente do sol. Ela, sem sapatos e com meias de criança, lenço sobre o rosto, dormindo e confiada na mão protectora que a ampara.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Umbigos colonialistas

As comunidades ocidentais "expatriadas", como aqui se diz, reunem-se uma ou duas vezes por ano: por altura do Ano Novo e por ocasião das festas nacionais dos países. Há comunidades fortes e influentes, ricas, empreendedoras - dinamarqueses, suecos, alemães, italianos, britânicos - como as há tão discretas e invisíveis que dir-se-ia não existirem. Há aquelas que se unem para patrocinar edições de obras sobre as relações históricas entre o Sião e os seus países de origem, animar exposições de artes, promover encontros e, até, abrirem restaurantes e pub's. Há, finalmente, aquelas que se encontram para matar saudades do idioma e para pôr em dia a má-língua. Dizia-me há tempos um grego, meu companheiro de escola de língua thai, que evitava participar nesses encontros, pois a miniatural confraria dos seus conterrâneos parecia ter-se especializado em dizer mal de tudo o que à Grécia e à Tailândia respeitava.
Os europeus possuem destas coisas. Querem sair da Europa a todo o transe, não gostam do clima frio, das chuvas e das neves, da água gélida das praias, da vida cinzenta, das intrigas do trabalho, das arrelias da política. Contam ansiosamente os meses, as semanas e os dias que precedem as férias de verão para partirem para os trópicos, mas quando se fixam nos trópicos fecham-se nas suas referências e encasulam-se numa blindagem de preconceitos contra a sociedade que os acolheu, ou desgastam-se em estéreis lutas intestinas. Vivem fora, olham de fora, criticam, desprezam, mas gostam de aqui viver. Europeus há aqui que nestas terras vivem há décadas e não falam meia dúzia de palavras em tailandês, não lêem uma linha, nunca entraram num museu, num templo, não sabem o significado dos códigos morais e de etiqueta locais, não passam do bife com batatas fritas e ovo a cavalo. Uma vizinha canadiana teve o atrevimento de se zangar com a sua mulher-a-dias porque esta não compreendera o significado do dia de natal e aparecera, como sempre o faz, para limpar a casa no dia 25 de Dezembro. Outro, suíço, gabou-se ter sobrevivido dez anos com recurso a linguagem gestual.
Inventaram um mundo. O fenómeno não é tailandês; é uma velha tendência colonial que já Roland Meyer, que assinava Komlach, detectara no Camboja do Protectorado Francês dos anos Vinte do século passado: "os brancos sem raízes que amaldiçoam e ignoram o Camboja desde os confins do seu bairro europeu, onde preservam as pueris manias da sua vida dita civilizada". No fundo, querem é criados, passar por grandes senhores, exibir status. O Ocidente só perde, pois nada sabe sobre o Oriente e o que julga saber não passa de fantasias colonialistas.Diverte-me ouvir os colonialistas falarem aos tailandeses de "Lord Buda", quando os thais não sabem o que Buda significa, pois aqui é referido como Phraá. Rio-me das referências que fazem a Luís XIV, a Platão, a Proust, a Degas, a Brecht e ao estilo barroco. Os thais sabem tanto disso como nós de Phra Narai, Sunthorn Phu, Kukrit Pramoj, Vajrayana, o Ramakien, o teatro likay.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Curiosidades tailandesas: sem medos e sem as vergonhas ocidentais

Sou distraído, pelo que só recentemente me dei conta de uma prática aqui muito arreigada, interpretada como supino gesto de cavalheirismo. Na Tailândia, quando os casais se passeiam, os namorados/maridos insistem em transportar a mala do seu par. Já cheguei a ver oficiais de alta patente, carregados de medalhas, transportando airosamente nas mãos uma malinha cor-de-rosa com arreios dourados.
Todos os actos delicados passam por suphab (educação) ou nissay dii (bom comportamento), pelo que as senhoras ficam Kreng Jáy (agradecidas e em dívida) para com tais manifestações.
Não me atrevi violar ostensivamente a privacidade das pessoas, mas pelos dois exemplos fotografados [de costas] fica a sugestão. Aqui, marido e mulher vão juntos ao cabeleireiro e à manicure, enchem a casa e a cara de cremes e até parece que partilham o make-up. Enfim, um monumento à igualdade. Entre nós, saídos recentemente do neolítico, até se exigia que os homens cheirassem a cavalo e se rissem sobranceiramente das colónias e dos roll-one. O mundo é um espectáculo de diferenças.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Povo mágico, povo de mágicos

Os siameses pelam-se por astrologia, quirologia, adivinhação, magia, numerologia, nigromância e espiritismo. São, sem tirar, iguais aos gregos e romanos da Antiguidade, pois a cepa comum indo-ariana plasmada pelo sânscrito - essa língua universal do conhecimento isotérico - criou uma comum visão do mundo que cobriu um largo arco geográfico que ia do Sudeste-Asiático ao Tibre e só foi destruída pelo advento do cristianismo. Os thais são, assim, um "povo antigo", com um "conhecimento antigo" no qual não há fronteiras claras entre o racional e o irracional, o sagrado e o profano, o temporal e o espiritual, o mundo dos deuses e o mundo dos homens. Tudo para eles é entendido como manifestação de poderes imanentes que não podem ser contrariados, mas apenas atenuados pela elevação espiritual de cada um. Ao contrário do que deste entendimento da vida escreveram duas ou três gerações de positivistas europeus, o conhecimento oculto não é fonte de alienação, mas segurança, não gera o fatalismo, mas fortalece os indivíduos nas afições, não semeia o desespero, mas alimenta a esperança. Quando confrontados com grandes desastres, os thais lançam mão de todos os recursos, falam com todos os deuses, franqueiam todos os templos - budistas, protestantes, católicos, jainistas, hindús - e pedem ajuda. A lógica parece ser: quantos mais deuses tiver do meu lado, mais facilmente poderei sair desta aflição. Este ecletismo e sincretismo religiosos são bem patentes. As pessoas trazem consigo, pendendo no peito, amuletos pré-budistas, imagens do Buda e crucifixos. Depois, tatuam-se com fórmulas propiciatórias que outrora se dizia permitirem imunidade contra os espíritos malignos e facultavam ora a invisibilidade, ora repeliam as armas dos inimigos.

Um dos filões mais produtivos da indústria cinematográfica local é, como não poderia deixar de ser, as fitas sobre Pí (espíritos) e o tema de conversa mais apetecido, para além da comida, são questões de natureza religiosa. As pessoas lêem avidamente, tal como no Ocidente medieval acontecia, textos edificantes: vidas de monges, jatakas do Buda - vidas anteriores do Iluminado - experiências de meditação nos "templos da floresta", sonhos e até viagens ao mundo do além.


Um dos fascínios dos thais é a magia. A patetice de alguns europeus interpreta este fascínio como demonstração de infantilidade. Como povo lúdico, os thais encontram na magia um divertido jogo de fintar as "leis naturais", ludibriar os sentidos, brincar com as certezas de cada um. Porém, mais profundo que o inocente divertimento, demonstra-se a Annica (ou impermanência), que é uma das grandes certezas do budismo. Tudo está em mudança e até as leis naturais podem ser contrariadas. Escandalizavam-se os missionários católicos franceses com o Rei Taksin (1767-1782) quando este lhes afirmava que se havia finalmente libertado das leis da atracção e que podia voar.
Em Banguecoque há centenas de bancas de magia. Vai-se ao astrólogo, ao vidente, ao intérprete de sonhos como se vai ao médico. Ali correm milhões dos bolsos aflitos, mas também correm milhões pela atracção pelo desconhecido. Recentemente, a magia também se colocou ao serviço dos turistas. Com um grande sorriso, os mágicos oferecem nas ruas sessões de magia ao alcance de qualquer um e, terminada a exibição, vendem os produtos e os segredos de mágica aos farangues (estrangeiros brancos). O mágico da foto realizou a proeza de vender em cinco minutos 50 Euro de produtos a três europeus extasiados. É o caminho das estrelas.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Dolorosas novas

Encontrei ontem doloroso testemunho da tragédia portuguesa de 1908. Datada de 15 de Fevereiro - uma semana após o regicídio - assinada por D. Manuel II, a carta anunciava ao Rei Chulalongkorn do Sião o passamento do Rei D. Carlos I e do Príncipe Real D. Luís Filipe. Mais que uma breve e protocolar nota informativa, presente-se a dor do novo e jovem monarca ao dar a triste notícia a um chefe de Estado que vivia no outro lado do mundo, mas que tivera a oportunidade de conhecer pessoalmente em 1897, quando Chulalongkorn por Lisboa passou em digressão oficial. Os arquivos tailandeses estão, como verifico, carregados de testemunhos portugueses, aqui encontrado valiosos documentos que em Lisboa, na voragem de insensibilidade, criminosa incúria e facciosismo se perderam para sempre. Que vergonha ter de vir à Tailândia para encontrar documentação portuguesa, escrita em português e emitida pelo Estado Português.

(...) "As mortes do meu muito amado e prezado pai e do meu muito querido irmão, vítimas de abominável assassinato deixaram-me entregue, bem assim à totalidade da Nação Portuguesa, na mais profunda aflição. (...) O interesse que VM sempre mostrou por toda a minha família é consoladora esperança de que Vossa Majestade tomará uma viva parte na acerba mágoa que me causaram tão cruéis golpes. Chamado n'estas tristes circunstâncias, pela ordem da sucessão e na continuidade das leis do Reino de Portugal, ao trono de meus antepassados, rogo a Vossa Majestade haja dispensar-me os mesmos sentimentos de afecto que dedicava ao Augusto Monarca falecido e de ficar certo do vivo desejo que tenho de estreitar cada vez mais as relações de boa inteligência que felizmente subsistem entre os nossos países (...)".

Dois anos depois, a república era imposta a tiros de canhão e as relações luso-siamesas eclipsaram-se, passando a representação consular para mãos de italianos pelas décadas de 20 e 30, até à chegada de um português nas vésperas da Segunda Guerra Mundial. Portugal perdeu, então, a última oportunidade de manter no Sião o estatuto de potência aliada, a mais antiga e respeitada, que os siameses sempre lhe haviam tributado. O estado de coisas foi tão confrangedor que um dia, por volta de 1911, a polícia siamesa entrou pelo nosso consulado adentro para questionar os residentes a razão "daquela bandeira que ali puseram no jardim". Referiam-se, claro, à verde-rubra que ninguém conhecia e que Lisboa não tivera sequer a sensatez de anunciar aos países com os quais mantinha relações diplomáticas. Coisas do amadorismo de uma república que se vai celebrar !

sábado, 9 de janeiro de 2010

História desconhecida dos portugueses na Ásia: os portugueses que dominaram Hong Kong


Clerk's of Councils, ou seja, Secretários Gerais da Colónia, José Maria de Almada e Castro e seu irmão Leonardo de Almada e Castro ocuparam durante décadas a terceira posição na hierarquia administrativa de Hong Kong e foram decisivos para a moldagem institucional da mais importante colónia da coroa britânica no extremo-Oriente. Conselheiros de John Bowring, governador de Hong Kong e embaixador incumbido de negociar o primeiro "tratado desigual" com o Sião em 1859, mantiveram-se como influentes figuras e, depois, o clã Castro ocupou relevantes posições até vésperas da Segunda Guerra Mundial. Não se tratou de caso isolado. Já antes da ascensão dos Castro, outro português, Alexandre Grande-Pré, ocupara as funções de Secretário da Colónia nos conturbados anos 40, ou seja, imediatamente após a cedência de Hong Kong ao Reino Unido, no desfecho da Primeira Guerra do Ópio. Grande-Pré foi depois comandante geral da polícia.
Os britânicos, tal como acontecera em Penangue em finais do século XVIII e em Singapura no primeiro quartel do século XIX, tentaram compreender o funcionamento e aplicar o modelo português, tido por mais experiente e alicerçado num profundo conhecimento dos modos e práticas asiáticos.
Hong Kong fazia parte, em 1848, do "império-sombra" português na Ásia. Ali funcionavam três escolas católicas - uma para rapazes europeus, leccionando em português e inglês; outra para raparigas e outra para chineses - e o ensino aí praticado era considerado modelar, pois desenvolvido por "scholars" (1). Em finais do século XIX, entre 10.000 britânicos e estrangeiros vivendo na cidade, 1.263 eram portugueses; ou seja, 12% de elite da colónia, pois que a massa dos quase 200.000 chineses ocupava funções modestas e detinha acesso limitado à engrenagem do poder.
Não deixa de ser sintomático o facto de Portugal abrir o primeiro consulado em Hong Kong antes de quaisquer outras potências europeias presentes na Ásia e, também, o facto do Sião ter aberto consulado em Macau anos antes de nomear um representante em Hong Kong. No trabalho que realizo detecto outra curiosidade: a chegada ao Sião, nas décadas de 60, 70 e 80 de muitos portugueses de Macau, fez-se através de Hong Kong; ou seja, Hong Kong era utilizado como agente difusor da rede informal de poder que os portugueses possuíam há muito. Positivamente, os portugueses viviam dentro do aparelho britânico, dominavam-lhe as fragilidades e tiravam partido da força britânica para se candidatarem a concursos para lugares de conselheiros junto da corte siamesa.
A defesa de Hong Kong foi, também, desde os primeiros momentos da colonização britânica, entregue a portugueses. Ao criar-se o Corpo de Voluntários, em 1854 - sintomaticamente durante a governação de Bowring - com a incumbência de proteger a cidade e manter a ordem pública, o número de portugueses fardados e armados atingia 15% dos efectivos. Os Voluntários Portugueses mantiveram-se como força relevante do dispositivo militar da colónia até à invasão japonesa de Dezembro de 1941 e muitos pagaram com a vida a defesa da sua terra, caso muito similar ao dos luso-descendentes na Malaia Britânica (actual Malásia), que foram notados pela bravura que demonstraram ao longo dos anos de guerrilha anti-nipónica (1942-45). Igualmente em Xangai se constituiu um Corpo de Voluntários Portugueses, que executava tarefas de vigilância e manutenção da ordem dentro do perímetro da Concessão Internacional.
Para todos quantos cultivam o miserabilismo como princípio para a análise da presença recente portuguesa nesta paragens, estes curtos apontamentos surgem como uma provocação. O propósito não é, evidentemente, provocar, mas contrariar lugares-comuns e essa tremenda inibição que tem feito de nós e da nossa historiografia um caso perdido e digno de piedade no triunfalismo historiográfico que domina a visão anglo-saxónica. Há muito que fazer e investigar, mas este é, creio, o caminho certo.

(1) ENDACOTT, G.B. A history of Hong Kong. London: Oxford Press, 1964

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Anna Leonowens era portuguesa

De Susan Morgan, Bombay Anna é, indiscutivelmente, o desvelar de um mistério que a biografada e sua descendência quiseram sepultar. Bristowe, o maior conhecedor da vida de Leonowens já o dissera há muitos anos: essa Anna não era, não podia ter sido britânica de nascimento. Anna Leonowens, a famosa governanta do Rei do Sião que inspirou o clássico musical de Hollywood The King and I, com Deborah Kerr e Yul Brynner, era, afinal, uma pobre rapariguinha meia-casta nascida em Bombaim. O avô de Anna seria um desses deserdados de poucas letras nascido num qualquer deprimido pequeno mundo rural inglês de inícios da Revolução Industrial que Chegara à Índia sem eira e alistara-se como praça no exército da British East India Company. Ali conheceu na "Cidade Negra" (ou Cidade Nativa) uma rapariga Topass (1) - isto é, euro-asiática católica de ascendência portuguesa - com quem contraiu matrimónio. Desse casamento que teve desfecho na prematura morte do soldado, nasceu Mary Anne, mãe de Anna "Leonowens". Esta, casou aos treze anos com um sargento sapador, mas logo enviuvou. Desse casamento vieram ao mundo duas raparigas, tendo Anna [Harriett Edwards] nascido semanas após a morte do progenitor.

Leonowens construiu várias identidades ao longo da vida. Nas memórias que deixou, afirmou ter nascido em Gales no seio de uma família com cabedais e que o seu pai - "oficial do exército" - a mandara vir logo que concluída esmerada educação. Se Leonowens recebeu alguma educação foi nas escolas regimentais. Viva, curiosa e extremamente inteligente - falava fluentemente quatro línguas e chegou a ser reconhecida como autoridade em sanscritologia - era uma força da natureza. Compreende-se que, ao chegar a hora do triunfo e do reconhecimento - foi sucessivamente preceptora dos filhos de Rama IV do Sião, jornalista-viajante e conferencista, militante da causa abolicionista e no fim da vida uma líder sufragista - tentasse ocultar as suas raízes.

Casou Anna com um homem obscuro, oriundo da classe média irlandesa protestante dizimada pelas fomes de 1840. Este Leon Owens morreu prematuramente. Fora funcionáro público em Bombaim mas quis mudar de vida e candidatou-se a gerente de um modestíssimo hotel em Pinangue (Penang). Ao falecer naquela que era conhecida como a "tumba do homem branco", deixou mulher e dois filhos na maisextrema penúria. Eis uma revelação que Susan Morgan não desenvolve. Pinangue é uma ilha situada no estreito de Malaca. Pertencendo ao sultão de Kedah, foi comprada pela Honorable Company em 1786, passando a integrar as possessões dos Straits Settlements. Ali, o Capitão Francis Light, oficial da EIC lançou os caboucos de uma cidade (George Town). Pinangue era despovoada, pelo que Light trouxe da península malaia muitos "portugueses" de Kedah e Malaca. Casou com uma luso-descendente e Pinangue passou a ser mais um bandel católico das lusotopias asiáticas que floresceram nesta parte do mundo entre os séculos XVI e XIX. Parece que Anna quis apagar esse registo e essa ligação. Nascera em Bombaim no seio do enclave meia-casta católico, mudou-se para Pinangue, uma ilha de luso-descendentes antes de desembarcar em Singapura, a nova pérola da Coroa. Ora, Singapura era, também, uma cidade feita por portugueses. Quando Raffles aí se instalou e içou a Union Jack, convidou muitos luso-descendentes de Pukhet e Malaca, mas também de Pinangue. Parece que tudo bate certo, mas Anna não queria ser tida por católica, muito menos por euro-asiática.


Não se sabe exactamente como se insinuou junto do cônsul do Sião em Singapura, mas se o fez terá invocado o seu nascimento britânico, pois o lugar de professora de inglês dos filhos do Rei requeria uma dama, não uma pobre meia-casta. Compreendo, agora, as amargas, injustas e depreciativas palavras que Anna escreveu a respeito dos luso-siameses de Banguecoque. Queria varrer da memória as suas origens, não se queria com eles identificar. Era um medo profundo esse de poder ser descoberta por aqueles cujo contacto evitava; ou seja, aqueles que lhe lembravam a parte oculta da sua identidade e a sua origem mestiça.

Depois de alguns anos no Sião, mudou de ares e tornou-se uma celebridade dos salões e academias da América do Norte e Europa. Era já Madame Leonowens, rica, culta, influente, pelo que destruiu toda a documentação e inventou uma vida. Um seu sobrinho neto chegou aos píncaros da popularidade. William Henry Pratt passou à história com o nome artístico de Boris Karloff e ainda é, por antonomásia, o Drácula das fitas do cinema a preto e branco. Boris Karloff, sobrinho neto de uma pobre rapariga luso-indiana de Bombaim.
MORGAN, Susan. Bombay Anna: The Real Story and Remarkable Adventures of the King and I Governess. Los Angeles: University of California Press, 2008.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Portugueses com canhões de Waterloo fazendo guerra no Laos


Encontrei hoje relevante documentação tailandesa sobre a participação do Corpo de Artilheiros e Engenheiros Portugueses na cataclísmica guerra que os siameses moveram contra o Principado de Lan Chang (actual Laos) entre 1827 e 1828. Já tinha localizado algumas referências nas Lettres de Bangkok, do Padre Bruguière das Missions Étrangères, publicadas nos Annalles de l'Association de la Propagation de la Foi, mas documentos de arquivo do Palácio Real atestando a importância militar dos "soldados cristãos" permitem-nos dar um passo em frente na avaliação da importância que os luso-siameses tiveram nos exércitos siameses até ao terceiro quartel do século XIX. É outra página sobre a História Desconhecida dos portugueses na Ásia que se abre.
Ora, esses portugueses vivendo perto da Igreja da Conceição eram nada mais que o corpo de elite do exército. Não era, pois, nem gente sem preparação - para se ser artilheiro ou engenheiro militar é necessário saber-se matemática e balística - nem simples peões. Viviam separados da restante população, detinham foros e liberdades que os isentavam de trabalho braçal nas corveias reais e sabiam línguas (latim, português e inglês). Quando aqui vieram as primeiras missões diplomáticas britânicas, respectivamente nos reinados de Rama II e Rama III, a Grã-Bretanha dispôs-se modernizar os exércitos de Banguecoque mercê do fornecimento de armas ligeiras de fogo e, depois, peças de artilharia. O Sião foi, nas palavras do Phra Khlang (Ministro para os contactos externos) "inundado de armas pelos britânicos". Os siameses, contudo, delas não sabiam fazer uso adequado, pelo que os conselheiros britânicos investiram fortemente na formação tecnológica da minoria católica luso-siamesa. Com canhões que haviam servido Wellington em Waterloo, estes artilheiros aplicaram pela primeira vez no Sudeste Asiático a tecnologia de fogos concentrados, devastadores sobre exércitos que de tais armas não tinham, sequer, conhecimento. A guerra foi brutal. O Príncipe de Vientiane, Chao Anou, um homem de grande carisma, pensara poder unir os principados Laos e denunciar a vassalidade que o obrigava a enviar tributo anual a Banguecoque. Confiante, deixou de enviar o bunga mas aos siameses, sondou os britânicos para lhes solicitar protecção e iniciou a rebelião, invadindo território siamês, chegando às cercanias de Banguecoque. No momento derradeiro, o Corpo de Artilheiros Portugueses fulminou a investida. A retaliação siamesa foi brutal. Lan Chang foi riscada do mapa, a sua capital destruída até às fundações e a população, por inteiro, transferida para aquilo que é hoje o Issan, no leste da Tailândia.
Nessa primeira guerra moderna, coube aos portugueses a parte de leão. Integrados no Primeiro Exército Siamês no teatro de operações, forte de 85.000 homens e comandado pelo Segundo Rei, tinham por camaradas de armas outra minoria étnica cristã com sobejas provas de habilidade castrense: os japoneses católicos que haviam sobrevivido à tomada e saque de Ayuthia pelos birmaneses em 1767. Deixaram um rasto de destruição tal que, em 1880, os franceses ainda recolhiam memórias da "grande guerra" entre os anciãos laocianos. No fim, Chao Anou foi trazido cativo para Banguecoque, torturado e morto.
O importante disto reside no facto de não se tratar de acontecimentos do século XVI ou XVII. Trata-se de história contemporânea. Infelizmente, em Portugal, só se estuda a Ásia que os portugueses conheceram no tempo de Mendes Pinto e Camões. Uma pena, pois mal sabemos avaliar a importância que nestas paragens tivemos até há bem pouco tempo. A receita, então, é: investigar, investigar, investigar.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

História desconhecida dos portugueses na Ásia: o arquitecto misterioso

As fontes documentais escritas constituem, naturalmente, o suporte por excelência da investigação histórica. Contudo, por vezes, à conta de tanto as citarmos, acabamos por nos tornar escravos involuntários e bem intencionados de um erro. Muitas são as referências ao Consulado Português em Banguecoque, a mais antiga representação diplomática estrangeira na Tailândia, mas excassas são as descrições do edifício onde se instalou desde a década de 1820, quando o primeiro cônsul titular - Carlos Manuel da Silveira - dela fez residência. Há uma vaga descrição, datada dos anos 40 do século XIX, em Frederick Arthur Neale (Narrative of a residence at the capital of the Kingdom of Siam, with description of the manners, customs and laws (...), v. pp. 276 e 279), bem como nas memórias deixadas por missionários norte-americanos que ali perto viveram durante os primeiros anos da sua actividade de pregação bíblica. Nestas últimas, que privilegiam o aspecto humano, o acolhimento caloroso que lhes foi dispensado, as conversas de fim de tarde à sombra da frondosa figueira centenar que ali ainda existe, não há propriamente a descrição da casa, mas traços impressionistas da aguarela da memória. Há, finalmente, executada em Março de 1844 por Luís Pereira de Campos, uma planta topográfica da Feitoria Portuguesa no Sião.
Sabemos que o edifício sofreu grandes obras nas décadas de 1860 e 1870 e que as gravuras publicadas nas páginas da Revista Ocidente (1883 e 1897) apresentam-no com a traça hoje existente. Dizia Neale que o Consulado era uma construção em bambú e varas, coberto de estuque caiado, que o cônsul Marcelino da Rosa pretendera substituir o frágil edifício por outro em pedra e alvenaria, pedindo a Goa que lhe enviassem os materiais para a erecção de uma representação digna do nome de Portugal. Reza Neale que a embarcação naufragou e que se perderam os precisos materiais. Ora, olhando para a planta topográfica de Luís Pereira de Campos (1844), consultada a legenda descritiva, avultam algumas referências que contradizem a fragilidade cantada por Neale: um caminho calcetado em tijolo, que ligava o embarcadouro ao edifício principal, vasto de onze compartimentos e que havia um muro em alvenaria protegendo a feitoria. Talvez as palavras de menos apreço de Neale se referissem ao edifício da Feitoria e não à residência do cônsul, contígua mas separada. Na planta de 1844, o edifício consular apresenta os contornos da actual residência do Embaixador, provando que o mesmo já existia e que terá sido posteriormente objecto de trabalhos de melhoramento estético.

Tudo isto não passaria de um simples [e até delirante] exercício de possibilidades se , entretanto, não tivesse sido confrontado com a imagem de uma réplica exacta do actual edifício principal da nossa embaixada. A UNESCO promove anualmente desde 2000 um concurso internacional para atribuição do galardão Asia-Pacific Heritage, destinado a premiar iniciativas que visem promover e distinguir as melhores obras de preservação da herança cultural arquitectónica no espaço Ásia-Pacífico. Em 2008, a Suffolk House, casa do governador de Penang, recebeu o prémio. Foi erigida em 1805 e sofreu alterações de vulto entre 1810 e 1812, funcionando como centro administrativo - leia-se "feitoria" - e residência do representante da Companhia Britânica das Índias Orientais. Ao percorrer a exposição alusiva ao prémio, agora patente em Banguecoque, olhei para a gravura da Suffolk House e disse para comigo: "conheço este edifício de algum lado". Depois, socorrendo-me da memória visual da nossa Embaixada, acrescentei-lhe caixa em madeira e frontão dórico, retirei as colunatas da varanda do primeiro piso e enxertei na fachada largas janelas. Olhando para o piso térreo, nada tirei nem acrescentei: é, tal e qual a nossa Embaixada. Mas surgiu um pequeno problema. Na Suffolk House, projectada no primeiro piso, uma varanda parece desafiar a minha especulação. Depois, lembrei-me que na residência dos nossos embaixadores, a sala de visitas é projectada e possui todos os traços de uma outrora varanda, entretanto fechada e anexada ao espaço da casa.
Se o actual edifício da nossa Embaixada é, tal como o vemos, produto de trabalhos executados na década de 1860, por que razão mimetiza um outro edifício construído 60 anos antes ? O edifício dito "georgiano" britânico integra elementos formais de uma gramática arquitectónica que era, na década de 1860, obsoleta. Que motivo levaria os portugueses a copiar um edificio com funcionalidades tidas por ultrapassadas ? O piso térreo de ambos os edifícios integra aquilo que comunmente se designa "estilo sino-português", uma adaptação do muito glosado "estilo chão português" do século XVII, exportado para os trópicos e muito praticado no Brasil colonial e em Macau dos séculos XVIII e XIX. O "estilo georgiano" exportado pelos britânicos para o Oriente não oferece qualquer similitude com a casa apalaçada de Penang. Concluo que os dois edifícios foram construídos por um engenheiro muito impregnado pelas soluções portuguesas e que, quiçá, foram riscados pela mesma mão, um em 1805-1812, o outro no início da década de 1820. O edifício de Penang ficou tal como fora projectado; o edifício português de Banguecoque sofreu alterações de monta na segunda metade do século XIX. Pinang foi povoada por muitos católicos luso-descendetes oriundos de Malaca, Quedá (Kedha) e Sião e teve importante paróquia dirigida por padres portugueses. Ora, os padres eram, como o sabemos, arquitectos improvisados. Não será a Suffolk House um edifício concebido por um português ? E não será o edificio da nossa embaixada o verdadeiro e primitivo edifício, subsequentemente alterado ? Aqui fica o desafio para os entendidos.

sábado, 2 de janeiro de 2010

O país onde os professores são venerados


São mal pagos mas venerados. Perante eles, os alunos ajoelham-se ou sentam-se a seus pés com as mãos juntas, como só o fazemos perante os altares. São os Gurús, do sânscristo Ku-rú, que os thais fixaram e modernizaram como Krú. Os professores primários e do liceu são chamados Krú, mas aos docentes universitários é reservado o tratamento de Adjaân, ou seja, guias, mestres e reveladores do conhecimento. Numa sociedade que se inspira no modelo bramânico, o krú é o eco tardio do sacerdote bramânico, casta despojada de riqueza material, acima das preocupações que movem artífices, comerciantes, soldados e administradores. Perante eles, os tailandeses assumem uma atitude reverente, não falam, ouvem e acenam afirmativamente com pequenos movimentos de cabeça. Aqui não se bate nos professores, não se insulta um professor nem há comissões de pais iracundos fazendo esperas, proferindo ameaças e justificando o fracasso dos rebentos na culpabilização de um professor. Este é, sem tirar, o paraíso daqueles que ao ensino consagraram as vidas, escolhendo nessa ocupação a pobeza voluntária compensada pelo tributo de respeito e agradecimento dos jovens aos quais consagram as vidas.
O Krú é a antítese do "colarinho branco", do "executivo" e do obcecado pelo dinheiro. No funcionalismo do Estado, o Krú tem direito a um uniforme de cor creme, a divisas, galões e medalhas, que orgulhosamente ostenta. Um professor primário é um alferes ou tenente, um professor de liceu um capitão, um assistente universitário um major, um doutor um coronel. Das mais remotas aldeias e vilas da Tailândia rural às grandes universidades da capital, envergam a farda do seu métier e é habitual vê-los, orgulhosos, passear pelas ruas ou pelos mercados entre a massa da população que, ao identificá-los, sorri agradecida.
Está em exibição nos cinemas um filme que é a exaltação do professor. Tem por título Krú Bâan Nok - o Professor da Aldeia dos Pássaros - e conta a saga de um jovem professor primário chegado aos confins da Tailândia nos anos 60. Ali chegou para ensinar a ler, escrever e contar, mas também para estimular a iniciativa colectiva, demonstrar os benefícios do saneamento básico, da limpeza e asseio dos corpos e das ruas, do exercício físico, do patriotismo e da cidadania. É um hino à heroicidade do funcionário do Estado que não busca recompensa pecuniária, que se defronta com a reserva dos poderosos e acaba por se tornar no líder da Aldeia dos Pássaros. Comovente, arrebatador, merecedor de cópia entre os portugueses.
Há dias encontrei uma velha professora universitária nos arquivos nacionais. Eu estava na companhia de um americano que ali também faz investigação. A senhora, nos seus setenta anos, perguntou-me o que ali fazia. Naturalmente, estando ela sentada, não fiquei de pé nem me sentei na cadeira vazia que ela me indicara. Vergei as pernas e coloquei-me, como o fazem os thais, num nível inferior à cabeça da professora. O americano, esse ficou de pé, com as manápulas nos bolsos e a mascar pastilha-elástica. No fim, perguntou-me: "que raio de posição a tua, até parece que lhe deves alguma coisa". A típica atitude do ocidental, que olha para os professores como pessoas que não possuem predicados para fazer dinheiro; logo refugiam-so no ensino. São dois mundos. Por mim, estou cada vez mais deste lado da civilização.