quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

1767: a revolta dos portugueses escravizados


Nos últimos dias de Ayutthaya assistiu-se à dissolução por inteiro do corpo de uma sociedade. A capital de 300.000 habitantes entrou em colapso, incêndios que ninguém combateu comeram até às fundações templos, palácios e armazéns, houve saque generalizado das reservas de víveres , brutais matanças às mãos dos invasores birmaneses e muita gente fugindo em grupos para os bosques infestados de animais selvagens ou percorrendo os caminhos dominados por bandos de ladrões. O rei siamês foi abandonado pelo séquito nas imediações da sua capital e morreu de doença e desidratação. O exército desintegrou-se. Ao ocuparem as últimas bolsas de resistência, os birmaneses deram aos sobreviventes duas semanas para que se preparassem para evacuar a região e rumassem em direcção ao cativeiro na Birmânia. Os sobreviventes da missão francesa, dirigidos pelo bispo Mgr. Brigot, concentraram-se no campo português, já então completamente calcinado pelos birmaneses. Aos católicos juntaram-se outras comunidades - Mon, Peguanos, Vietnamitas católicos e Japoneses - tendo-lhes sido transmitida análoga ordem de evacuação. Os católicos luso-siameses fizeram saber aos birmaneses que recusavam submeter-se à autoridade do bispo francês e que tinham como líderes espirituais os padres portugueses Isidoro da Conceição e Bernardino Salema.
Os padres franceses juraram ali fidelidade aos novos senhores e aceitaram a ordem de evacuação e cativeiro. Esperava-os, porém, uma marcha da morte de oitocentos quilómetros por montanhas e alcantilados densamente arborizados. As colunas de prisioneiros foram avançando penosamente em direcção a Oeste, atormentados pela fome, pela sede e sempre agredidos pelos seus carcereiros. A via sacra durou seis meses e nela padeceram milhares. Ao chegarem a Tavoy, na costa do Mar de Andaman, tamanha era a fome que ocorreram casos de canibalismo. A coluna de Brigot só sobreviveu graças à ajuda caridosa recebida das missões católicas portuguesas em Tenasserim. Os adversários reconciliavam-se na hora da dor. Ao invés de aceitarem o infortúnio, partilhando-o com o seu rebanho, os padres franceses conseguiram transporte para Pondicherry - colónia francesa no sudeste indiano - e abandonaram à sua sorte aqueles que neles haviam confiado; em suma, uma excelente lição de abnegação e dedicação missionárias.
A coluna portuguesa iniciou marcha em direcção à Birmânia em Maio de 1767. A comunidade mantivera-se unida e mantinha a liderança, pelo que ao longo do trajecto foram discutindo a melhor forma de se furtarem à vigilância do batalhão birmanês que os acompanhava. Após três semanas, numa noite escura, os portugueses manietaram os guardas, mataram-nos e puseram-se em fuga. Ao ser informado desta rebelião, o comandante birmanês da região foi acometido de grande ira e deu ordens às tropas para que massacrassem todos os portugueses internados nas matas. Dois generais birmaneses, com numerosos efectivos, foram lançados no encalço dos fugitivos. Para os portugueses foram nove longos meses de marchas nocturnas e pausas diurnas. O inimigo rondava e o silêncio e a imobilidade constituiam a melhor máscara. Ao cair do sol, retomavam o caminho em direcção a leste. A morte foi reclamando vidas. Dos mil saídos de Ayutthaya, só sobreviveriam 300 quando, em Abril de 1768, andrajosos e famintos, chegaram à actual Banguecoque.

No Sião, um novo homem forte revelara-se. O general Sin, mestiço sino-thai, organizara a resistência ao ocupante e instalara o seu quartel-general em Thonburi, hoje cidade satélite de Banguecoque situada na margem oposta do rio. Os portugueses de Ayutthaya instalaram-se provisoriamente em torno de uma igreja em Sam Sén pertencente ao Padroado. Este templo alberga hoje uma das mais sólidas comunidades luso-descendentes e dá pelo nome de Igreja da Conceição. Thaksin (Sin) foi informado da chegada desses portugueses e deu ordens expressas para que se apresentassem em Thonburi. Deu-lhes terra (Campo de Santa Cruz) e materiais para que ali erigissem uma igreja. Os membros da comunidade depressa se destacaram pelo destemor nas batalhas, pelo que o rei Taksin entre eles escolheu os setenta e oito mais bravos e deles fez a sua guarda pessoal. A guerra que faziam sem pausa nas hostes do rei não era, porém, reconhecida pelos padres franceses que, de novo, haviam aparecido para reclamar os direitos sobre a Missão do Sião. As mais agrestes, injustas e infames páginas foram então escritas e enviadas para França pelo padre Corre e companheiros. A estas intempestivas considerações, a comunidade virou-lhes as costas. Imaginemos, pois, a fúria de tão bons pastores quando, em Maio de 1770, o Rei siamês em pessoa visitou o campo cristão e fez aos franceses os mais rasgados elogios aos "meus portugueses". Disse: "estes homens nada sabem de saques, são fiéis e bravos e têm a protegê-los a mais antiga religião do mundo" (Carta de M. Corre aos directores do Seminário das Missions Étrangères. AME, vol 886, p. 445).

Depois, foram doze anos de campanhas militares no norte, no sul e leste. O Sião ia despertando e reapossando-se das regiões que se haviam furtado à sua autoridade após o colapso de Ayutthaya. Nessas batalhas sem fim, a comunidade luso-siamesa esteve sempre na dianteira e pagou pesado tributo à morte. Na correspondência dos missionários franceses evidencia-se este estado permanente de mobilização. Numa das cartas, o padre francês afirma que "em Thonburi só há mulheres e crianças, pois os homens [cristãos] estão permanentemente fora, entregues a missões de guerra longe de casa".
Esses Rebelos, Cruz, Martins, Soares, Silvas, Baptistas e Fernandes morreram um pouco por todo o Sião. Ao regressarem, os sobreviventes encontraram as suas famílias entregues a pobreza extrema mas, como lembra o insuspeito padre francês, sempre com o mesmo incorrigível orgulho português. "Uma jovem rapariga foi pedida em casamento por um rico mandarim (funcionário do Rei). Ao receber o convite, respondeu-lhe generosamente que a posição de cristã era superior à sua [do mandarim] e que ela não sacrificaria a sua qualidade a todas as riquezas do mundo e que mais facilmente se casaria com um pobre cristão que com um rei gentio". Dizimada e reduzida a 1/5 do seu efectivo inicial, esgotada pelas provações e isolada do mundo exterior, a comunidade não desertou, recusou-se servir o inimigo e manteve-se leal ao poder siamês. Carregando prestígio de cicatrizes e louros de vitória, seria ao longo dos próximos oitenta anos um dos mais vigorosos pilares do Sião pré-moderno. Pena que esta e outras histórias não tenham acolhimento nos manuais escolares portugueses.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Ayutthaya, 1767: aqui lutou-se até ao último grão de pólvora


Maquete de Ayutthaya fora-de portas no século XVII. À direita, o bandel dos portugueses.

A convite da leitora de Português em Banguecoque, passei hoje o dia em Ayutthaya, antiga capital do Sião onde, até 1767, residiu forte comunidade católica luso-siamesa. A visita de estudo inscreve-se nas actividades culturais da nossa embaixada e foi largamente correspondida por uma quarentena de amigos de Portugal, luso-descendentes, alunos de língua portuguesa e até funcionários da nossa embaixada. Tudo está a ser feito para, em crescendo de actividades, se celebrar aqui em 2011 o meio milénio de relações entre a Tailândia e Portugal. Pediram-me - a Luísa Dutra e a Pralom Bunrasamee, tradutora de português e também professora - que apresentasse sumariamente aos participantes o bandel português e fizesse o historial daquele que foi, até à sua completa destruição, um dos mais fortes núcleos de população católica em terras da Ásia até finais do século XVIII.

Ao invés de uma aula de história, preferi, como é meu timbre, fazer um exercício de "patriotismo científico" e contar-lhes, sem lenda nem ficção, os derradeiros dias dessa orgulhosa gente numa luta sem quartel e sem esperança na defesa do seu Rei (o Rei do Sião), da sua religião (o catolicismo) e da sua casa (Ayutthaya). A aldeia portuguesa situava-se fora de muralhas e tinha como edifícios axiais o templo dominicano, a igreja franciscana e o seminário-templo dos Jesuítas. Quando a sorte se inverteu contra Portugal em meados do século XVII e um a um caíram os grandes centros da actividade portuguesa na Insulíndia, populações católicas luso-descendentes de Celebes e Malaca afluíram a Ayutthaya em busca de segurança. A população do Ban Protukét ascendeu a 4000 ou 5000 pessoas devidamente comandadas por um Capitão eleito pelo povo cristão e confirmado pela corte siamesa.

Evocação de uma das glórias militares portuguesas em terras do Sião

A Este do Ban Protukét, na margem oposta do rio Chao Phrya, situava-se a aldeia japonesa, quase inteiramente integrada por católicos fugidos às perseguições anti-cristãs do Japão dos Tokugawa. A Oeste, encontrava-se o seminário-igreja de Saint Joseph, que os padres missionários franceses haviam estabelecido na década de sessenta do século XVII após inúteis tentativas de submissão dos portugueses. Os franceses, coitados, com ou sem bula papal, pouco ou nada conseguiram fazer no Sião e resignaram-se a intrigar junto da Santa Sé, da corte do Rei Sol e dos reis siameses contra aquela gente que recusava trair a fidelidade ao Padroado. Como lembrou recentemente Alain Forest, a missão francesa no Sião entreteve-se em receber e formar catecistas vietnamitas no Sião e a ensinar a língua vietnamita aos sacerdotes franceses. Nunca foram obedecidos nem estimados pelos católicos siameses, pois desde cedo exibiram uma confrangedora ignorância sobre as características do meio e dos mecannismos profundos da organização social siamesa, para além de confundirem o seu papel de missionários com os objectivos da diplomacia francesa.

Dois luso-descendentes

Ora, quando nas primeiras décadas do século XVIII Ayutthaya perdeu a força de grande potência no Sudeste-Asiático e emergiu a belicosa e expansionista dinastia Konbaung na Birmânia, as populações do mandala siamês foram expostas a um inimigo que fazia tábua-rasa da cultura política das relações internacionais da região e que exercia a guerra como única modalidade da acção externa. O fundador dessa dinastia, Alaungpaya, conhecido pelos métodos brutais de aniquilamento dos estados vizinhos, após reduzir a cinzas o Pegú, invadiu o Sião em 1759 e assediou Ayutthaya. A investida, brutal e sem qualquer respeito pelas convenções da guerra, plasmadas pela doutrina budista que aconselhava batalhas-torneio entre voluntários, em vez de choque entre exércitos, deixou os siameses aterrorizados. A guerra que o gigantesco exército birmanês trazia era inteiramente nova. Não visava troféus, mas o aniquilamento completo do adversário, lançava mão de massacres sistemáticos, destruição integral de cidades, vilas e aldeias e redução à escravidão dos sobreviventes; em suma, uma guerra norteada pelo intuito de infundir terror e desertificar regiões. Em 1760, já às portas de Ayutthaya, o exército birmanês foi detido precisamente no Bandel Português. A oposição que encontraram foi tão dura, as perdas dos atacantes tão grandes que Alaungpaya deu instruções de retirada. Nas últimas horas, já as suas tropas retiravam desordenadamente ante a contra-ofensiva dos portugueses, o rei birmanês caiu por terra, fulminado pelos estilhaços de uma peça de artilharia que explodira ao fazer fogo sobre o Ban Protukét. Ayutthaya salvara-se pela resistência e grande sangue frio dos católicos ante o mar birmanês.

Os restos do grande templo no coração de Ayutthaya

Os birmaneses lamberam as feridas e reorganizaram-se. Em 1765, um imenso exército, agora comandado por Hsinbyushin, filho de Alaungpaya, invadiu de novo o Sião disposto a reduzir a pó a capital do Sião. A cidade estava exangue, o seu comércio declinante e lutas intestinas haviam enfraquecido Ayutthaya, pelo que, de novo, os birmaneses avançaram sem dificuldade até às muralhas da grande capital. Os bastiões foram guarnecidos com católicos do Ban Protukét, mas os restantes habitantes do bandel, fora de muralhas e expostos a grande perigo, recusaram-se abandonar os seus templos e aí se barricaram. Resistiram a todas as investidas birmaneses, causando-lhes milhares de mortos. Incapazes de derrotar os católicos, atacaram o aldeamento japonês na outra margem, reduzindo-o a escombros, destruindo depois as feitorias inglesa e holandesa da VOC. Muitos japoneses, holandeses e ingleses atravessaram a nado o rio e procuraram refúgio na aldeia portuguesa. A esta afluiram também muitos peguanos e chineses que tinham os seus bairros nas proximidades. Ayutthaya ardia e os soldados siameses já não obedeciam, fugindo para evitar o extermínio. O Ban Protukét resistiu durante seis meses a bombardeamento de artilharia e ataques frontais da infantaria, elefantes e cavalaria birmanesas. Nos últimos dias de Março de 1767, sem víveres e sem munições, os portugueses aceitaram depor armas. Era o último reduto de resistência. Ao contrário das promessas do inimigo, mal entregaram as armas, homens, mulheres e crianças foram severamente agredidos, alguns mortos ali mesmo e os restantes reduzidos à escravidão.

Monge budista. Wat Phra Ram (Templo de Buda-Rei)

Hoje, junto do cemitério onde jazem cerca de 200 restos mortais de luso-siameses, evoquei essa tragédia. Aquela gente lutou até ao último grão de pólvora e não vacilou ao decidir lutar pela sua liberdade. Uma lição de heroísmo que integra as mais vibrantes páginas da saga portuguesa nos confins desta Ásia que celebrará proximamente a aliança na paz e na guerra entre dois povos. Os luso-siamses terão compreendido perfeitamente o sentido daquela façanha que hoje evocámos. Os tailandeses, todos falando um excelente português, compreenderam, também eles, que os portugueses não vieram aqui apenas para fazer business pois, chegada a hora decisiva, lutaram ombro a ombro com os siameses na defesa da terra comum, não deixaram cair a bandeira e não tentaram, como outros, fugir e salvar os cabedais. Morreram pela sua liberdade; é tudo. Isto merecia uma coprodução épica luso-tailandesa ou o nome de uma avenida lisboeta: Avenida dos Heróis de Ayutthaya.Há quem pretenda espezinhar, ridicularizar e até fazer esquecer aos portugueses a grandeza e a honra de o serem. Só quem não for digno do nome de Portugal pode persistir em negar a esta nação as mais vibrantes páginas da história da nossa civilização.