segunda-feira, 1 de março de 2010
Azeitão do Sudeste Asiático
quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010
1767: a revolta dos portugueses escravizados
Os padres franceses juraram ali fidelidade aos novos senhores e aceitaram a ordem de evacuação e cativeiro. Esperava-os, porém, uma marcha da morte de oitocentos quilómetros por montanhas e alcantilados densamente arborizados. As colunas de prisioneiros foram avançando penosamente em direcção a Oeste, atormentados pela fome, pela sede e sempre agredidos pelos seus carcereiros. A via sacra durou seis meses e nela padeceram milhares. Ao chegarem a Tavoy, na costa do Mar de Andaman, tamanha era a fome que ocorreram casos de canibalismo. A coluna de Brigot só sobreviveu graças à ajuda caridosa recebida das missões católicas portuguesas em Tenasserim. Os adversários reconciliavam-se na hora da dor. Ao invés de aceitarem o infortúnio, partilhando-o com o seu rebanho, os padres franceses conseguiram transporte para Pondicherry - colónia francesa no sudeste indiano - e abandonaram à sua sorte aqueles que neles haviam confiado; em suma, uma excelente lição de abnegação e dedicação missionárias.
A coluna portuguesa iniciou marcha em direcção à Birmânia em Maio de 1767. A comunidade mantivera-se unida e mantinha a liderança, pelo que ao longo do trajecto foram discutindo a melhor forma de se furtarem à vigilância do batalhão birmanês que os acompanhava. Após três semanas, numa noite escura, os portugueses manietaram os guardas, mataram-nos e puseram-se em fuga. Ao ser informado desta rebelião, o comandante birmanês da região foi acometido de grande ira e deu ordens às tropas para que massacrassem todos os portugueses internados nas matas. Dois generais birmaneses, com numerosos efectivos, foram lançados no encalço dos fugitivos. Para os portugueses foram nove longos meses de marchas nocturnas e pausas diurnas. O inimigo rondava e o silêncio e a imobilidade constituiam a melhor máscara. Ao cair do sol, retomavam o caminho em direcção a leste. A morte foi reclamando vidas. Dos mil saídos de Ayutthaya, só sobreviveriam 300 quando, em Abril de 1768, andrajosos e famintos, chegaram à actual Banguecoque.
Depois, foram doze anos de campanhas militares no norte, no sul e leste. O Sião ia despertando e reapossando-se das regiões que se haviam furtado à sua autoridade após o colapso de Ayutthaya. Nessas batalhas sem fim, a comunidade luso-siamesa esteve sempre na dianteira e pagou pesado tributo à morte. Na correspondência dos missionários franceses evidencia-se este estado permanente de mobilização. Numa das cartas, o padre francês afirma que "em Thonburi só há mulheres e crianças, pois os homens [cristãos] estão permanentemente fora, entregues a missões de guerra longe de casa".
Esses Rebelos, Cruz, Martins, Soares, Silvas, Baptistas e Fernandes morreram um pouco por todo o Sião. Ao regressarem, os sobreviventes encontraram as suas famílias entregues a pobreza extrema mas, como lembra o insuspeito padre francês, sempre com o mesmo incorrigível orgulho português. "Uma jovem rapariga foi pedida em casamento por um rico mandarim (funcionário do Rei). Ao receber o convite, respondeu-lhe generosamente que a posição de cristã era superior à sua [do mandarim] e que ela não sacrificaria a sua qualidade a todas as riquezas do mundo e que mais facilmente se casaria com um pobre cristão que com um rei gentio". Dizimada e reduzida a 1/5 do seu efectivo inicial, esgotada pelas provações e isolada do mundo exterior, a comunidade não desertou, recusou-se servir o inimigo e manteve-se leal ao poder siamês. Carregando prestígio de cicatrizes e louros de vitória, seria ao longo dos próximos oitenta anos um dos mais vigorosos pilares do Sião pré-moderno. Pena que esta e outras histórias não tenham acolhimento nos manuais escolares portugueses.
domingo, 21 de fevereiro de 2010
Ayutthaya, 1767: aqui lutou-se até ao último grão de pólvora
A convite da leitora de Português em Banguecoque, passei hoje o dia em Ayutthaya, antiga capital do Sião onde, até 1767, residiu forte comunidade católica luso-siamesa. A visita de estudo inscreve-se nas actividades culturais da nossa embaixada e foi largamente correspondida por uma quarentena de amigos de Portugal, luso-descendentes, alunos de língua portuguesa e até funcionários da nossa embaixada. Tudo está a ser feito para, em crescendo de actividades, se celebrar aqui em 2011 o meio milénio de relações entre a Tailândia e Portugal. Pediram-me - a Luísa Dutra e a Pralom Bunrasamee, tradutora de português e também professora - que apresentasse sumariamente aos participantes o bandel português e fizesse o historial daquele que foi, até à sua completa destruição, um dos mais fortes núcleos de população católica em terras da Ásia até finais do século XVIII.
Os birmaneses lamberam as feridas e reorganizaram-se. Em 1765, um imenso exército, agora comandado por Hsinbyushin, filho de Alaungpaya, invadiu de novo o Sião disposto a reduzir a pó a capital do Sião. A cidade estava exangue, o seu comércio declinante e lutas intestinas haviam enfraquecido Ayutthaya, pelo que, de novo, os birmaneses avançaram sem dificuldade até às muralhas da grande capital. Os bastiões foram guarnecidos com católicos do Ban Protukét, mas os restantes habitantes do bandel, fora de muralhas e expostos a grande perigo, recusaram-se abandonar os seus templos e aí se barricaram. Resistiram a todas as investidas birmaneses, causando-lhes milhares de mortos. Incapazes de derrotar os católicos, atacaram o aldeamento japonês na outra margem, reduzindo-o a escombros, destruindo depois as feitorias inglesa e holandesa da VOC. Muitos japoneses, holandeses e ingleses atravessaram a nado o rio e procuraram refúgio na aldeia portuguesa. A esta afluiram também muitos peguanos e chineses que tinham os seus bairros nas proximidades. Ayutthaya ardia e os soldados siameses já não obedeciam, fugindo para evitar o extermínio. O Ban Protukét resistiu durante seis meses a bombardeamento de artilharia e ataques frontais da infantaria, elefantes e cavalaria birmanesas. Nos últimos dias de Março de 1767, sem víveres e sem munições, os portugueses aceitaram depor armas. Era o último reduto de resistência. Ao contrário das promessas do inimigo, mal entregaram as armas, homens, mulheres e crianças foram severamente agredidos, alguns mortos ali mesmo e os restantes reduzidos à escravidão.
Hoje, junto do cemitério onde jazem cerca de 200 restos mortais de luso-siameses, evoquei essa tragédia. Aquela gente lutou até ao último grão de pólvora e não vacilou ao decidir lutar pela sua liberdade. Uma lição de heroísmo que integra as mais vibrantes páginas da saga portuguesa nos confins desta Ásia que celebrará proximamente a aliança na paz e na guerra entre dois povos. Os luso-siamses terão compreendido perfeitamente o sentido daquela façanha que hoje evocámos. Os tailandeses, todos falando um excelente português, compreenderam, também eles, que os portugueses não vieram aqui apenas para fazer business pois, chegada a hora decisiva, lutaram ombro a ombro com os siameses na defesa da terra comum, não deixaram cair a bandeira e não tentaram, como outros, fugir e salvar os cabedais. Morreram pela sua liberdade; é tudo. Isto merecia uma coprodução épica luso-tailandesa ou o nome de uma avenida lisboeta: Avenida dos Heróis de Ayutthaya.Há quem pretenda espezinhar, ridicularizar e até fazer esquecer aos portugueses a grandeza e a honra de o serem. Só quem não for digno do nome de Portugal pode persistir em negar a esta nação as mais vibrantes páginas da história da nossa civilização.
terça-feira, 26 de janeiro de 2010
Realismo lírico: amor proletário
segunda-feira, 25 de janeiro de 2010
Umbigos colonialistas
Os europeus possuem destas coisas. Querem sair da Europa a todo o transe, não gostam do clima frio, das chuvas e das neves, da água gélida das praias, da vida cinzenta, das intrigas do trabalho, das arrelias da política. Contam ansiosamente os meses, as semanas e os dias que precedem as férias de verão para partirem para os trópicos, mas quando se fixam nos trópicos fecham-se nas suas referências e encasulam-se numa blindagem de preconceitos contra a sociedade que os acolheu, ou desgastam-se em estéreis lutas intestinas. Vivem fora, olham de fora, criticam, desprezam, mas gostam de aqui viver. Europeus há aqui que nestas terras vivem há décadas e não falam meia dúzia de palavras em tailandês, não lêem uma linha, nunca entraram num museu, num templo, não sabem o significado dos códigos morais e de etiqueta locais, não passam do bife com batatas fritas e ovo a cavalo. Uma vizinha canadiana teve o atrevimento de se zangar com a sua mulher-a-dias porque esta não compreendera o significado do dia de natal e aparecera, como sempre o faz, para limpar a casa no dia 25 de Dezembro. Outro, suíço, gabou-se ter sobrevivido dez anos com recurso a linguagem gestual.
Inventaram um mundo. O fenómeno não é tailandês; é uma velha tendência colonial que já Roland Meyer, que assinava Komlach, detectara no Camboja do Protectorado Francês dos anos Vinte do século passado: "os brancos sem raízes que amaldiçoam e ignoram o Camboja desde os confins do seu bairro europeu, onde preservam as pueris manias da sua vida dita civilizada". No fundo, querem é criados, passar por grandes senhores, exibir status. O Ocidente só perde, pois nada sabe sobre o Oriente e o que julga saber não passa de fantasias colonialistas.Diverte-me ouvir os colonialistas falarem aos tailandeses de "Lord Buda", quando os thais não sabem o que Buda significa, pois aqui é referido como Phraá. Rio-me das referências que fazem a Luís XIV, a Platão, a Proust, a Degas, a Brecht e ao estilo barroco. Os thais sabem tanto disso como nós de Phra Narai, Sunthorn Phu, Kukrit Pramoj, Vajrayana, o Ramakien, o teatro likay.
segunda-feira, 18 de janeiro de 2010
Curiosidades tailandesas: sem medos e sem as vergonhas ocidentais
Todos os actos delicados passam por suphab (educação) ou nissay dii (bom comportamento), pelo que as senhoras ficam Kreng Jáy (agradecidas e em dívida) para com tais manifestações.
Não me atrevi violar ostensivamente a privacidade das pessoas, mas pelos dois exemplos fotografados [de costas] fica a sugestão. Aqui, marido e mulher vão juntos ao cabeleireiro e à manicure, enchem a casa e a cara de cremes e até parece que partilham o make-up. Enfim, um monumento à igualdade. Entre nós, saídos recentemente do neolítico, até se exigia que os homens cheirassem a cavalo e se rissem sobranceiramente das colónias e dos roll-one. O mundo é um espectáculo de diferenças.
sábado, 16 de janeiro de 2010
Povo mágico, povo de mágicos
Em Banguecoque há centenas de bancas de magia. Vai-se ao astrólogo, ao vidente, ao intérprete de sonhos como se vai ao médico. Ali correm milhões dos bolsos aflitos, mas também correm milhões pela atracção pelo desconhecido. Recentemente, a magia também se colocou ao serviço dos turistas. Com um grande sorriso, os mágicos oferecem nas ruas sessões de magia ao alcance de qualquer um e, terminada a exibição, vendem os produtos e os segredos de mágica aos farangues (estrangeiros brancos). O mágico da foto realizou a proeza de vender em cinco minutos 50 Euro de produtos a três europeus extasiados. É o caminho das estrelas.
quarta-feira, 13 de janeiro de 2010
Dolorosas novas
(...) "As mortes do meu muito amado e prezado pai e do meu muito querido irmão, vítimas de abominável assassinato deixaram-me entregue, bem assim à totalidade da Nação Portuguesa, na mais profunda aflição. (...) O interesse que VM sempre mostrou por toda a minha família é consoladora esperança de que Vossa Majestade tomará uma viva parte na acerba mágoa que me causaram tão cruéis golpes. Chamado n'estas tristes circunstâncias, pela ordem da sucessão e na continuidade das leis do Reino de Portugal, ao trono de meus antepassados, rogo a Vossa Majestade haja dispensar-me os mesmos sentimentos de afecto que dedicava ao Augusto Monarca falecido e de ficar certo do vivo desejo que tenho de estreitar cada vez mais as relações de boa inteligência que felizmente subsistem entre os nossos países (...)".
Dois anos depois, a república era imposta a tiros de canhão e as relações luso-siamesas eclipsaram-se, passando a representação consular para mãos de italianos pelas décadas de 20 e 30, até à chegada de um português nas vésperas da Segunda Guerra Mundial. Portugal perdeu, então, a última oportunidade de manter no Sião o estatuto de potência aliada, a mais antiga e respeitada, que os siameses sempre lhe haviam tributado. O estado de coisas foi tão confrangedor que um dia, por volta de 1911, a polícia siamesa entrou pelo nosso consulado adentro para questionar os residentes a razão "daquela bandeira que ali puseram no jardim". Referiam-se, claro, à verde-rubra que ninguém conhecia e que Lisboa não tivera sequer a sensatez de anunciar aos países com os quais mantinha relações diplomáticas. Coisas do amadorismo de uma república que se vai celebrar !
sábado, 9 de janeiro de 2010
História desconhecida dos portugueses na Ásia: os portugueses que dominaram Hong Kong
Clerk's of Councils, ou seja, Secretários Gerais da Colónia, José Maria de Almada e Castro e seu irmão Leonardo de Almada e Castro ocuparam durante décadas a terceira posição na hierarquia administrativa de Hong Kong e foram decisivos para a moldagem institucional da mais importante colónia da coroa britânica no extremo-Oriente. Conselheiros de John Bowring, governador de Hong Kong e embaixador incumbido de negociar o primeiro "tratado desigual" com o Sião em 1859, mantiveram-se como influentes figuras e, depois, o clã Castro ocupou relevantes posições até vésperas da Segunda Guerra Mundial. Não se tratou de caso isolado. Já antes da ascensão dos Castro, outro português, Alexandre Grande-Pré, ocupara as funções de Secretário da Colónia nos conturbados anos 40, ou seja, imediatamente após a cedência de Hong Kong ao Reino Unido, no desfecho da Primeira Guerra do Ópio. Grande-Pré foi depois comandante geral da polícia.
Os britânicos, tal como acontecera em Penangue em finais do século XVIII e em Singapura no primeiro quartel do século XIX, tentaram compreender o funcionamento e aplicar o modelo português, tido por mais experiente e alicerçado num profundo conhecimento dos modos e práticas asiáticos.
Hong Kong fazia parte, em 1848, do "império-sombra" português na Ásia. Ali funcionavam três escolas católicas - uma para rapazes europeus, leccionando em português e inglês; outra para raparigas e outra para chineses - e o ensino aí praticado era considerado modelar, pois desenvolvido por "scholars" (1). Em finais do século XIX, entre 10.000 britânicos e estrangeiros vivendo na cidade, 1.263 eram portugueses; ou seja, 12% de elite da colónia, pois que a massa dos quase 200.000 chineses ocupava funções modestas e detinha acesso limitado à engrenagem do poder.
Não deixa de ser sintomático o facto de Portugal abrir o primeiro consulado em Hong Kong antes de quaisquer outras potências europeias presentes na Ásia e, também, o facto do Sião ter aberto consulado em Macau anos antes de nomear um representante em Hong Kong. No trabalho que realizo detecto outra curiosidade: a chegada ao Sião, nas décadas de 60, 70 e 80 de muitos portugueses de Macau, fez-se através de Hong Kong; ou seja, Hong Kong era utilizado como agente difusor da rede informal de poder que os portugueses possuíam há muito. Positivamente, os portugueses viviam dentro do aparelho britânico, dominavam-lhe as fragilidades e tiravam partido da força britânica para se candidatarem a concursos para lugares de conselheiros junto da corte siamesa.
A defesa de Hong Kong foi, também, desde os primeiros momentos da colonização britânica, entregue a portugueses. Ao criar-se o Corpo de Voluntários, em 1854 - sintomaticamente durante a governação de Bowring - com a incumbência de proteger a cidade e manter a ordem pública, o número de portugueses fardados e armados atingia 15% dos efectivos. Os Voluntários Portugueses mantiveram-se como força relevante do dispositivo militar da colónia até à invasão japonesa de Dezembro de 1941 e muitos pagaram com a vida a defesa da sua terra, caso muito similar ao dos luso-descendentes na Malaia Britânica (actual Malásia), que foram notados pela bravura que demonstraram ao longo dos anos de guerrilha anti-nipónica (1942-45). Igualmente em Xangai se constituiu um Corpo de Voluntários Portugueses, que executava tarefas de vigilância e manutenção da ordem dentro do perímetro da Concessão Internacional.
Para todos quantos cultivam o miserabilismo como princípio para a análise da presença recente portuguesa nesta paragens, estes curtos apontamentos surgem como uma provocação. O propósito não é, evidentemente, provocar, mas contrariar lugares-comuns e essa tremenda inibição que tem feito de nós e da nossa historiografia um caso perdido e digno de piedade no triunfalismo historiográfico que domina a visão anglo-saxónica. Há muito que fazer e investigar, mas este é, creio, o caminho certo.
(1) ENDACOTT, G.B. A history of Hong Kong. London: Oxford Press, 1964
quarta-feira, 6 de janeiro de 2010
Anna Leonowens era portuguesa
MORGAN, Susan. Bombay Anna: The Real Story and Remarkable Adventures of the King and I Governess. Los Angeles: University of California Press, 2008.
terça-feira, 5 de janeiro de 2010
Portugueses com canhões de Waterloo fazendo guerra no Laos
Ora, esses portugueses vivendo perto da Igreja da Conceição eram nada mais que o corpo de elite do exército. Não era, pois, nem gente sem preparação - para se ser artilheiro ou engenheiro militar é necessário saber-se matemática e balística - nem simples peões. Viviam separados da restante população, detinham foros e liberdades que os isentavam de trabalho braçal nas corveias reais e sabiam línguas (latim, português e inglês). Quando aqui vieram as primeiras missões diplomáticas britânicas, respectivamente nos reinados de Rama II e Rama III, a Grã-Bretanha dispôs-se modernizar os exércitos de Banguecoque mercê do fornecimento de armas ligeiras de fogo e, depois, peças de artilharia. O Sião foi, nas palavras do Phra Khlang (Ministro para os contactos externos) "inundado de armas pelos britânicos". Os siameses, contudo, delas não sabiam fazer uso adequado, pelo que os conselheiros britânicos investiram fortemente na formação tecnológica da minoria católica luso-siamesa. Com canhões que haviam servido Wellington em Waterloo, estes artilheiros aplicaram pela primeira vez no Sudeste Asiático a tecnologia de fogos concentrados, devastadores sobre exércitos que de tais armas não tinham, sequer, conhecimento. A guerra foi brutal. O Príncipe de Vientiane, Chao Anou, um homem de grande carisma, pensara poder unir os principados Laos e denunciar a vassalidade que o obrigava a enviar tributo anual a Banguecoque. Confiante, deixou de enviar o bunga mas aos siameses, sondou os britânicos para lhes solicitar protecção e iniciou a rebelião, invadindo território siamês, chegando às cercanias de Banguecoque. No momento derradeiro, o Corpo de Artilheiros Portugueses fulminou a investida. A retaliação siamesa foi brutal. Lan Chang foi riscada do mapa, a sua capital destruída até às fundações e a população, por inteiro, transferida para aquilo que é hoje o Issan, no leste da Tailândia.
Nessa primeira guerra moderna, coube aos portugueses a parte de leão. Integrados no Primeiro Exército Siamês no teatro de operações, forte de 85.000 homens e comandado pelo Segundo Rei, tinham por camaradas de armas outra minoria étnica cristã com sobejas provas de habilidade castrense: os japoneses católicos que haviam sobrevivido à tomada e saque de Ayuthia pelos birmaneses em 1767. Deixaram um rasto de destruição tal que, em 1880, os franceses ainda recolhiam memórias da "grande guerra" entre os anciãos laocianos. No fim, Chao Anou foi trazido cativo para Banguecoque, torturado e morto.
O importante disto reside no facto de não se tratar de acontecimentos do século XVI ou XVII. Trata-se de história contemporânea. Infelizmente, em Portugal, só se estuda a Ásia que os portugueses conheceram no tempo de Mendes Pinto e Camões. Uma pena, pois mal sabemos avaliar a importância que nestas paragens tivemos até há bem pouco tempo. A receita, então, é: investigar, investigar, investigar.
segunda-feira, 4 de janeiro de 2010
História desconhecida dos portugueses na Ásia: o arquitecto misterioso
sábado, 2 de janeiro de 2010
O país onde os professores são venerados
O Krú é a antítese do "colarinho branco", do "executivo" e do obcecado pelo dinheiro. No funcionalismo do Estado, o Krú tem direito a um uniforme de cor creme, a divisas, galões e medalhas, que orgulhosamente ostenta. Um professor primário é um alferes ou tenente, um professor de liceu um capitão, um assistente universitário um major, um doutor um coronel. Das mais remotas aldeias e vilas da Tailândia rural às grandes universidades da capital, envergam a farda do seu métier e é habitual vê-los, orgulhosos, passear pelas ruas ou pelos mercados entre a massa da população que, ao identificá-los, sorri agradecida.
Está em exibição nos cinemas um filme que é a exaltação do professor. Tem por título Krú Bâan Nok - o Professor da Aldeia dos Pássaros - e conta a saga de um jovem professor primário chegado aos confins da Tailândia nos anos 60. Ali chegou para ensinar a ler, escrever e contar, mas também para estimular a iniciativa colectiva, demonstrar os benefícios do saneamento básico, da limpeza e asseio dos corpos e das ruas, do exercício físico, do patriotismo e da cidadania. É um hino à heroicidade do funcionário do Estado que não busca recompensa pecuniária, que se defronta com a reserva dos poderosos e acaba por se tornar no líder da Aldeia dos Pássaros. Comovente, arrebatador, merecedor de cópia entre os portugueses.
Há dias encontrei uma velha professora universitária nos arquivos nacionais. Eu estava na companhia de um americano que ali também faz investigação. A senhora, nos seus setenta anos, perguntou-me o que ali fazia. Naturalmente, estando ela sentada, não fiquei de pé nem me sentei na cadeira vazia que ela me indicara. Vergei as pernas e coloquei-me, como o fazem os thais, num nível inferior à cabeça da professora. O americano, esse ficou de pé, com as manápulas nos bolsos e a mascar pastilha-elástica. No fim, perguntou-me: "que raio de posição a tua, até parece que lhe deves alguma coisa". A típica atitude do ocidental, que olha para os professores como pessoas que não possuem predicados para fazer dinheiro; logo refugiam-so no ensino. São dois mundos. Por mim, estou cada vez mais deste lado da civilização.