quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Bangkok: catolicismo quer dizer Portugal


A catedral de Assunção, sede do arcebispado de Banguecoque, acolheu hoje milhares de católicos tailandeses para a celebração do Natal de Cristo. As paredes exteriores do grande edifício estavam cobertas com faixas com as cores verde-rubra, em declarada alusão à marcante influência de Portugal na implantação do cristianismo nestas paragens do mundo.
No interior, cercando a nave central, bandeiras de Portugal decoravam a magnífica catedral construída pelos padres franceses em inícios do século XX. Durante séculos, ser-se católico na Ásia era sinónimo de português. Portugal, mais que um Estado, era uma ideia de fraternidade entre os homens, um sentimento de unidade para além das fronteiras. Estes "portugueses" detinham importante lugar no Camboja, no Vietname, na actual Malásia, no Sião e na Birmânia, sendo-lhes atribuídas funções relevantes na administração, no exército e no comércio. Sendo súbditos de reis, eram "portugueses", com direito a foros de isenção e liberdades no quadro das monarquias budistas. Deixaram de ser considerados quando em Portugal, com a criação da cidadania (1820), se viram privados de declararem fidelidade a duas pátrias, a terra onde haviam nascido e o sentimento de pertencerem a uma comunidade de fé que tinha no Padroado da Índia o seu centro de irradiação.


Com as doze badaladas da meia noite e um intenso fogo de artifício que quase fazia saltar os vitrais, a entrada da Cruz Processional, precedida pelos turibulários, sineiros e círios encheu o templo de solenidade, enquanto o coro entoava o Gloria in excélsis Deo / Et in terra pax homínibus bonae voluntatis / Laudámus te benedícimus te adorámus te glorificámus te (...). Os orientais possuem apurado sentido da grandeza litúrgica. As muitas dezenas de rapazes avançaram em passo cadenciado enquanto a multidão benzia-se ou fazia o wáy tailandês (cumprimento similar à posição de oração). Como requer a cultura local, as expressões faciais não denunciam qualquer emoção, pois o controlo das paixões da alma é tido como uma conquista de si mesmo.

A entrada do Cardeal de Banguecoque, Michael Mitchai Kitbunchu, velho amigo de João Paulo II, aumentou a emoção. É um homem ainda vigoroso e ágil, no andar e no falar, não obstante os oitenta anos. Há um ano, em visita de cortesia à catedral, na companhia de um grande amigo meu, grande historiador da Ásia Portuguesa, Sua Eminência apareceu-nos de calções e sapatos de ténis, pois acabara de chegar, suado e felicíssimo, do jogging que diariamente exercita. Foi deveras estranho ver dois portugueses beijando o anel cardinalício ... a um cardeal em trajo de corrida ! Hoje ostentava os grandes paramentos das cerimónias festivas. Fala com desenvoltura e não deixou de referir o ano atribulado, mas depressa amenizou a multidão, fazendo-a rir, ao afirmar que só podia dar alguns presentes - bonecos para as crianças com menos de 5 anos - pois "Deus nunca dá tudo de cada vez. Esperem pelo próximo ano para ver se nessa altura Deus vos quer dar algo mais". Seguiu-se o beijo aos pés de Cristo Menino ao som de Sánctus pléni sunt caéli et terra glória tua (...). Foi uma noite de Natal diferente, longe da família, longe do bacalhau e do chiffon de chocolate, mas senti-me entre a minha gente, entre os "portugueses da Tailândia".A Igreja católica tailandesa não tem mais de meio milhão de fiéis, mas é activa, quase militante, possuindo orgãos de comunicação social, colégios, escolas técnicas e uma universidade. Desmultiplicando-se am acções no apoio às populações mais carenciadas, facto que muito tem contribuído para o grande respeito que lhe tributam as autoridades, parece ter um risonho futuro, que confirmei pela juventude dos muitos padres ordenados. Se o nosso MNE quer um aliado precioso na Tailândia, deve bater à porta da Igreja Católica. Ali, o nome de Portugal, mais que respeitado, é amado.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Bangkok: a Veneza do Oriente em soberba exposição


Os olhos não se cansam e os pés não param com tantos eventos de primeiras águas. Os tailandeses, decididamente, adquiriam as técnicas mais arrojadas e lançam-se em catadupa de exposições que, no Ocidente, entrariam pela porta grande dos maiores museus e salas de exposição. Hoje, depois de horas de leitura na biblioteca - sintomaticamente lendo uma memória histórica sobre a fundação de Banguecoque - visitei a Art of Yesterday, Art of Tommorow - patente no já aqui referido Bangkok Cultural Center.


Krung Thep Maha Nakhon, ou antes, Banguecoque para os ocidentais, era um simples lugarejo em meados do século XVIII, primeira paragem fluvial para o trade junk oriundo de Macau. Após fiscalização da carga e tripulação na foz do rio Chao Phraya (o rio em forma de serpente que atravessa a actual megalópole), as mercadorias eram transvasadas para embarcações de menor calado e transportadas para Ayuthia, então capital siamesa. Em 1767, Ayuthia foi assaltada e saqueada pelos exércitos birmaneses e o Estado thai entrou em colapso. Um líder surgiu nesse momento trágico e liderou a resistência ao invasor. O novo homem forte, Phya Taksin, verificando a indefensibilidade da antiga capital devastada, instalou-se em Tonburi, hoje cidade satélite de Banguecoque, situada da margem oposta do rio. O seu sucessor, general Chakri, fundador da actual dinastia, foi coroado rei em 1782 e decidiu erigir uma nova cidade na margem esquerda do Chao Phraya, menos exposta a incursões inimigas.


Os primeiros dias da nova mandala thai restaurada não foram fáceis: guerras intermináveis contra os birmaneses, penúria monetária e matérias primas, rarefacção demográfica e quase total ausência de funcionários qualificados. A dinastia Chakri queria demonstrar ocupar legitimamente o trono, pelo que não olhou a meios e sacrifícios para se lançar numa política de grandes obras que exibissem a restauração do Estado. Para o efeito, recorreu-se à pedra e tijolos da antiga capital, abriram-se portas à vaga de imigração chinesa, redesenhou-se a estrutura social dirigente. Nesses dias, muitos homens oriundos dos estratos sociais mais humildes ascenderam na administração e serviço do Rei. Entre eles pontificavam muitos católicos luso-siameses, que ocupariam doravante e até à década de 1860 postos relevantes. Nos frescos do novo coração do Estado, o complexo de palácios e templos, armazéns, casamatas e escritórios, aí estão eles, os portuguet, de mosquete e espingardas de pederneira em riste defendendo a cintura de muralhas.



Povo anfíbio, "civilização hidráulica", "economia do arroz", o Reino do Sião construiu a sua capital em terrenos propícios à produção e escoamento do precioso gramíneo. Os canais (artificiais) que até há décadas substituíam as estradas, abertos pelo trabalho obrigatório das corveias do sistema sakdina - "feudalismo siamês - de que eram isentos os portuguet, merecereram a curiosidade dos viajantes europeus, que passaram a referir-se a Banguecoque como a "Veneza do Oriente".


Em meados do século XIX, a capital do Sião mostrava o desiquilíbrio e diversidade característicos das grandes cidades agro-mercantis do sudeste-asiático. Tal como Rangoon na Birmâmia, sobre o Irrawady e Saigão sobre o Song Sai Gon, possuía um núcleo administrativo e religioso com grandes edifícios de prestígio, envolvido por um dédalo de caminhos cercados de construções de materiais perecíveis, com lojas para a rua no andar térreo e habitação no primeiro piso, habitadas por siameses. Outras "baixas" comerciais e industriais nasceram em zonas mais distantes, acolhendo comunidades étnicas de origem vária, sobretudo chineses, mas também indianos e malaios, que se foram fixando e afirmando ao longo do século XIX. Os "enclaves" das minorias religiosas, "mouros" e católicos, desenvolveram-se na zona ribeirinha em torno de mesquitas e igrejas.


O impacto ocidental foi traumático, crescendo de intensidade a partir dos meados do século XIX e levando o Sião a adaptar-se cultural, tecnológica e institucionalmente ao Ocidente, sob pena de ser considerado um "Estado bárbaro" e intervencionado pelo leão britânico, que entretanto se apossara da Birmânia e sultanatos malaios, e pelo galo francês que havia cravado unhas sobre os actuais Laos e Camboja, territórios outrora vassalos do Sião. Datam das décadas de 1870, 1880 e 1890 os grandes edifícios públicos de aparato, feitos à imagem da arquitectura de pedra, cimento e ferro europeus. Soluções arquitectónicas híbridas, onde a mão de arquitectos, decoradores, pintores e desenhadores italianos é marcante, expressam a angustiosa procura de um "modelo siamês" integrado numa linha internacional.

A Banguecoque clássica - programa urbanístico e monumental com declarada intensão restauracionista vazado de Ayuthia - terminou no último quartel do século XIX, quando a macademização, a recepção do urbanismo e edificação de estilo ocidentais se sobrepuseram. O Sião conheceu transformações económicas e sociais aceleradas durante os reinados de Rama V e Rama VI. A construção do Estado moderno estava praticamente realizada, sustentada pela ideologia de uma via siamesa para a autocracia (desenhada a partir do modelo russo dos últimos Romanov e pelo Raj britânico sobre a Índia), mas também pela crescente afirmação do nacionalismo.


Em 1932, um golpe militar e o anúncio da imposição de um regime constitucional, abriu novo capítulo na história do país. O novo regime, nascido com a aprovação do Rei Rama VII, depressa deixou revelar as suas verdadeiras fontes de inspiração: as ideologias da modernidade então prevalecentes no mundo entre-guerras, ou seja, o comunismo e os fascismos.

No fim dos anos 30, os novos dirigentes do Sião, vendo na preservação da monarquia um forte bastião reactivo à escalada totalitária que subscreviam, impuseram uma regência e precipitaram a saída e abdicação de Rama VII, que morreria no exílio na Grã-Bretanha em 1941. O país, agora regido pelo filo-fascista Phibun Songkram (พิบูล สงคราม), transformou Banguecoque no centro de experiências de duvidoso alcance e resultado, aplicando nas obras públicas um programa cujo objectivo era o de exibir o nascimento de um Estado-nação étnica e linguisticamente homogéneo. As minorias foram confrontadas com sistemático programa de nacionalização compulsiva, os siameses submetram-se à brutal política de "thaificação" - paradoxalmente, o novo regime aboliu os trajos tradicionais, impondo a ocidentalização como conquista da "civilização" - e desenvolveram a mística nacionalista mercê da uniformização, inculcação ideológica, mobilização e propaganda. Em 1940, com o colapso da França ante Hitler, o Sião mudou de nome e passou a chamar-se Tailândia. Os exércitos tailandeses iniciaram uma guerra com a Indochina Francesa, atacando o Camboja para a recuperação dos territórios da margem esquerda do Mécongue, outra vassalos do Sião. Em 1941, o país declarou guerra aos EUA e permitiu a passagem do exército japonês nos ataques à Malaia britânica e Birmânia.



O programa de obras públicas de Phibun marca, ainda hoje, os grandes nós rodoviários da capital. Os monumentos-praça da Democracia, mas sobretudo o
Monumento à Vitória (Anusawari Chai Samoraphum, o único existente no mundo em memória da vitória do Eixo), foram encomendados a arquitectos e decoradores italianos residentes na Tailândia e são, sem tirar nem por, verdadeiras obras de arte fascista com colagem de símbolos siameses. Severamente bombardeada pela aviação Aliada, Banguecoque renasceu dos escombros nos anos 50. Agora cidade alinhada com o Mundo Livre, com os 3 biliões de dólares recebidos dos EUA para se apetrechar de infraestruturas necessárias a uma grande capital, foi rectaguarda logística e de divertimento para centenas de milhares de GI's durante o conflito vietnamita. Deste tempo marcado pela procura de paraísos artificiais, nasceu a indústria de divertimento nocturno, hoje uma sombra do que tará sido nos anos 60, 70 e 80, com os seus bordeis, "ago-go" bares, cabarés, salas de massagens e hotéis de curta permanência. A Tailândia deixou para trás o subdesenvolvimento. A consolidação económica, a industrialização, o nascimento de uma classe média urbana com necessidades de consumo e lazer, resultado da era do desenvolvimentismo a todo o custo que marcaram os regimes militares após Sarit Dhanarajata , converteram-na numa Meca do turismo exótico, com os hotéis de luxo, as grandes superfícies comerciais, os parques e indústrias temáticos fixando "a verdadeira atmosfera thai" (Rose Garden, Jim Thompson House, Snake Farm), a que se juntou, depois, o incentivo governamental a festividades tradicionais ameaçadas pelo desenvolvimento. Banguecoque passou também a emblematizar o caos rodoviário, com interminável congestionamento automóvel, poluição galopante, anomia e desorganização resultantes da chegada de milhões de camponeses em busca de melhores condições de vida. Os últimos anos têm assistido a importantes melhorias. A criação do Metro de Superfíce e do Metropolitano, a limpeza e pintura sistemáticas das fachadas, centrais de tratamento de efluentes e resíduos sólidos estão a dar uma nova cara à capital. As preocupações ambientalistas, muito estimuladas pelo Rei, desencadearam o surgimento de muitas organizações cívicas que se vão impondo aos interesses de construtores e especuladores. Banguecoque muda todos os dias, mas fica sempre Banguecoque.Contudo, para os budistas, o tempo é ilusão: tudo passa, tudo morre, tudo está condenado ao esquecimento. Tal como Sukothai e Ayuthia, ontem grandes capitais siamesas, hoje meros parques arquelógicos, Banguecoque sabe que um dia também desaparecerá, tragada pelas águas ou pela luxuriante natureza. Dou comigo cada manhã, do meu apartamento num 20º andar no centro da zona comercial, a seguir o voo de corvos, das aves de rapina e dos grandes morcegos. Ao descer, nos galhos das árvores saltam esquilos, ratazanas maiores que gatos regressam aos interstícios da terra, cobras de anéis brilhantes e coloridos apanham os primeiros raios de sol. Banguecoque, quando deixar de o ser, ilustrará a vã ilusão do homem em viver para a eternidade.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Militante do Bem e do Belo


Foi ontem inaugurada em Banguecoque uma exposição evocativa da Princesa Real Galyani Vadhana, princesa de Naradhiwas (สมเด็จ พระเจ้าพี่นางเธอ เจ้าฟ้ากัลยาณิวัฒนา กรมหลวงนราธิวาสราชนครินทร์), irmã mais velha do Rei, cujas exéquias fúnebres aqui reportei há duas semanas. Morreu após doença prolongada - cancro no cérebro - aquela que foi, ao longo de meio século a mais militante das causas a que hoje se entregam as ONG's.
Graças a Galyani, os elefantes do Sião foram recenseados e protegidos de maus tratos, o comércio de presas proibidas e a exibição em festividades e divertimentos rigorosamente legislada. Em finais da década de 70, a espécie encontrava-se em vias de extinção. Graças ao trabalho da fundação que a princesa animava, o número de paquidermes está em franca recuperação. Ecologista avant-la-lettre, a princesa foi também uma defensora das florestas ameaçadas pela cobiça de madeireinos e construtores civis sem escrúpulos. A ela se ficou a dever a criação de reservas florestais, parques naturais e bibliografia especializada sobre a fauna e flora tailandesas. Ao contrário da Malásia, Camboja, Laos e Birmânia, verdadeiros paraísos para especuladores e devastadores da natureza, a Tailândia tenta corrigir os atropelos do desenvolvimentismo cego e possui, caso raro na Ásia, um vasto público que terça armas pela causa preservacionista.


Galyani foi também a grande amiga dos deficientes profundos: abriu escolas técnicas destinadas a diminuídos físicos e mentais, animou a rede de orfanatos que o país não possuía - hoje um dos emblemas da protecção à infância na Ásia - e espalhou pelas regiões mais remotas a quadrícula de postos de acolhimento, diagnóstico e tratamento de problemas congénitos. Poucos meses antes de morrer, ainda se deslocava de helicóptero de aldeia em aldeia para verificar in loco a efectiva aplicação do seu programa. As associações de protecção aos doentes cardíacos e às crianças autistas receberam da princesa muitos milhões de Euros e são hoje igualmente consideradas modelares.

Nos tempos da guerra contra o comunismo, envergou o uniforme de miliciana e desenvolveu a guerra pela conquista dos corações e das inteligências. A Cruz Vermelha Tailandesa, mais que as tropas governamentais, fez recuar a guerrilha.
Manteve durante toda a vida intensa actividade de promoção de outras culturas. Viajou por todo o planeta, aprendeu e inspirou-se na visita a museus, feiras culturais e exposições, transmitindo o conhecimento adquirido nessa viagens de estudo aos técnicos das instituições que na Tailândia zelam pela preservação, restauro, estudo e divulgação do património arquitectónico, museológico, bibliográfico e arquivístico do país.

Galyani foi, sobretudo, uma mulher de cultura. Deve-lhe o país a difusão do gosto pela música clássica ocidental, a criação de orquestras sinfónicas e o envio de muitos jovens músicos talentosos para as mais renomadas escolas de música e composição do Ocidente. Lembro-me vê-la, semanas antes de morrer, assistir ao concerto para piano 26, de Mozart. Os dedos tamborilavam acompanhando o ritmo e, decaída, ainda sorria. Galyani deixou obra escrita, mas foi como professora da universidade de Thammasat que cultivou e promoveu o gosto pelas letras francesas, de que era incondicional admiradora. É destas pessoas, mais que de merceeiros e contabilistas, que as sociedades modernas precisam, perdidas no frenesim do nada e sem esteio de dignidade para a promoção daquilo que é substância da liberdade.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

O grande rei leproso


Príncipe contemporâneo de D. Afonso Henriques sobre cuja infância e juventude pouco ou nada se sabe. Obscuras primícias, com perda de privilégios, enxovalhos e destituição pela mão de um rei usurpador remeteram Jayavarman para os confins de um império khmer decaído e vulnerável. Ali esteve anos estudando e discutindo religião à sombra de um templo bramânico até que, subitamente, por volta dos quarenta anos de idade, a pálida estrela deste desterrado mudou de radiância. Uma invasão brutal e destruidora, o saque e colapso da capital khmer fizeram deste proscrito o salvador do seu povo. O monge fez-se soldado, o estudioso deixou de parte o recolhimento e comandou os exércitos camponeses na reconquista da liberdade. Depois da vitória, corou-se rei e transformou-se no mais ardoroso pregador do budismo, declarando-o religião do Estado. Na tradição khmer dos reis divinos, foi tido como o mais virtuoso dos mortais, o mais rigoroso intérprete da palavra do Iluminado, logo, como Assok o fora para a Índia, um Buda-Rei. Reinou quase meio século e dele ficou a nagara (capital) Angkor Thom que conhecemos. Do "culto da personalidade" que rodeou este génio militar e político ficaram vestígios ainda hoje profundamente enraízados na teoria do poder real que o budismo therevada transporta. O Rei da Tailândia é o último destes monarcas, posto que o Rei do Camboja, reposto no trono após o pesadelo totalitário comunista de Pol Pot, perdeu grande parte do halo sobrenatural que o investia como intermediário entre o cosmos e o mundo dos homens.
Jayavarman foi um rei patriarca e paternal. Doente minado pela insidiosa lepra que lhe corrompeu o corpo e reforçou o espírito, espalhou o bem e a misericórdia. Mandou construir mais de cem hospitais, leprosarias, casas de acolhimento para orfãos e deficientes, rasgou estradas e assegurou protecção a peregrinos, dando-lhes comida, cama e lume. Ao morrer, com noventa anos, mereceria sem dúvida mais santidade que S. Luís de França. Rezam as crónicas reais khmeres que o Rei trabalhou até ao último dia de vida, padecendo de dores lancinantes. Ao morrer, o seu povo chorou-o durante décadas, na lembrança do grande monarca que os retirara das trevas.
É desta aventura espiritual de um homem diminuído mas gigante que nos relata a The King's last Song. É raro um revolucionário religioso (ou político) possuir tacto político. Amenófis IV condenou o Egipto à miséria, como Lutero lançou a Europa na mais perversa e longa das guerras que levaram ao colapso da Respublica Christiana. Basta um homem bom para que o mundo se salve da dor, parece ser o epitáfio do grande Rei.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

E a maioria silenciosa disse presente



E ao terceiro dia, uma massa imensa de gente vinda dos quatro cantos do reino convergiu para Banguecoque para prestar homenagem ao seu Rei no dia em que celebra 81 anos de vida ao serviço do povo. Foi um calvário para chegar ao Terreiro Real (Sanam Luang), em frente do palácio amuralhado que foi o berço desta grande cidade. Não me fiando nas minhas falaciosas estimativas, socorro-me dos noticiários: cem mil pessoas. Pobres, ricos, muito ricos, gente de todas as etnias e religiões, velhos, novos e crianças de colo ali estiveram horas à espera da breve cerimónia das velas.
O Rei não esteve presente, como nunca acorreu a tal festa, mas estiveram todas as instituições que decidem o ser e não ser deste país: as forças armadas, as universidades e escolas técnicas, os sindicatos, os grupos empresariais, o monacado budista, as organizações assistenciais, os veteranos das guerras contra o comunismo e o sub-desenvolvimento.
Senti a força amável deste povo civilizadíssimo na atitude estóica com que aguentou a eternidade que precedeu o acto público. As pessoas ficam caladas, ou falam baixo, sorriem e brincam sem gesticular e sem gritar. Uma massa de amarelo, muitas fotofrafias do Rei, em cada mão uma vela amarela ou flores amarelas. Tocou-me a pose hierática das delegações dos colégios militares, a indiferença à dor da pose hirta dos cadetes, rapazes e raparigas, como me espantou o tom altivo mas não arrogante dos milhares de escuteiros perfilados e alinhados.
Os tailandeses não são maníacos da organização como o são os japoneses, nem possuem o espírito de formigueiro organizado que os chineses insistem em mostrar ao mundo sempre que se lhes pede uma demonstração de força. Os thais são informais, muito afeitos à personalidade de cada, pelo que o holismo que aqui se diz existir vive na tensão entre o espírito comunitário e preceitos que ninguém se atreve infringir e o aquela dose de irreverência simpática com que cada um tenta distinguir-se do grupo. A maior arma dos thais é o sorriso. Parece uma banalidade, mas não é. Nesta terra, só o Rei não sorri, fiel à crença budista que afirma tratar-se do estádio supremo de perfeição humana que precede o nirvana. Se atentarem nas fotos, não há pessoa que não tenha as comissuras sorridentes.De súbito, a grande banda da marinha executa o hino monárquico e a multidão que até aí estivera em silêncio transforma-se num coro em que cada um tenta sobrepor-se à voz do parceiro. Uma liturgia impressionante. As pessoas cantam e os olhos brilham de orgulho. Cada um acende a sua vela e a noite faz-se dia. Nunca assisti a tal coisa na minha vida. Um alto dignitário escolhido para o efeito lê uma longa declaração em louvor do Rei, posto que pede aos presentes que reiterem um juramento de fidelidade ao Rei. É o velho juramento que vem desde os tempos do Rei Trailok (século XV) e que obriga cada um a purificar o coração, oferecendo-o ao trono através de um comovente movimento de entrega da vida ao interesse colectivo consubstanciado na figura do Rei.
Terminado o juramento, uma marcha patriótica tendo como fundo uma cascata de fogo de artifício com as cores nacionais. Furo a barreira policial. Devem ter julgado ser um jornalista farang, pelo que me envolvi na alta roda da nata da aristocracia que se encontrava no palco do terreiro.
Aqui está a aristocracia que serve a dinastia há mais de duzentos anos. Percebi estarem unidos por laços de sangue, mas sobretudo por uma cultura de corte que faz deste país terreno difícil para as arremetidas do lodaçal plutocrático. Foram gentilíssimos.
Sorriram, fizeram pose e um alto dignitário disse-me: "come, joint to us and take pictures has your pleasure". Não posso deixar de reparar que é gente de bela presença, finas maneiras, falar quase inaudível como manda a educação da corte. Que diferença entre esta estirpe que venceu batalhas e fez este país e a gandulagem suburbana feita gente que assaltou o poder no Ocidente e nada mais traz na cabeça que o tilintar do venal dinheirinho. Esta aristocracia tem uma vantagem. Não possui títulos nem é hereditária, como o era a ocidental, o que a faz aberta ao mérito e capaz de profundas alianças estratégicas com o povo chão. Família aristocrática sem mérito e sem folha de serviços volta, após cinco gerações à estaca zero. Aqui parece reunir-se o melhor antídoto à inveja revolucionária do dinheiro: a união entre o povo e o rei servida por uma aristocracia de serviço. Hoje, pela primeira vez desde que aqui estou, cantei a plenos pulmões o "sadudi Maha Rahja, sadudi Maha Rahjinii" (saúdo-vos meu Rei, saúdo-vos minha Rainha). A maioria não é só a força bruta do número, mais o papel verde. A maioria também é, deve ser, a força da qualidade. Fiquei aquietado após o sobressalto de ontem. Aqui, "eles" terão de passar por cima de toda esta gente para implantar a tal coisa repelente que vigora em tantas paragens da orbe.
A Maioria Silenciosa disse o que tinha a dizer ! Pronto.