Um antropólogo francês, muito versado nas coisas do Camboja, informou-me como quem debita uma estatística, já não haver portugueses no Camboja. Nas suas andanças pelo país indagou, falou com os mais idosos das vilas das cercanias da capital, foi a Sianoukville (outrora Kampong Som) - único grande porto de mar do Camboja, onde outrora vivera numerosa comunidade católica - entrevistou sacerdotes católicos e nada; não há vestígios da comunidade portuguesa cambojana, tragada pelo vórtice genocida do regime comunista de Pol Pot.
Quando o aventureiro e explorador alemão Adolf Bastian esteve no Camboja na década de 1860, a comunidade católica era constituída quase integralmente por "portugueses". "Muitos dos cristãos são de ascendência portuguesa. O actual rei do Camboja [Norodom I] atribui parte da sua educação ao bispo católico [Monsenhor Michè]. (...) Os cristãos constituem a guarda de honra do Rei, que gosta de os observar enquanto fazem exercícios de fogo com artilharia pesada"(1).
Bastian seguira as pisadas de Henry Mouhot, um anglo-francês que anos antes se internara no Camboja vindo do Sião e morrera com as febres endémicas que dominavam a inóspita geografia do país. O Camboja era então um vassalo de Banguecoque, mas mantinha adereços de autonomia. O Rei mantinha corte, administração e exército. No exército e administração pontificavam os "portugueses": "muito imitativos (...) sentem orgulho em vestir-se com trajos europeus, alguns fatos segundo a moda do século XVII, especialmente entre os descendentes dos portugueses, que são numerosos" (2).
Bastian seguira as pisadas de Henry Mouhot, um anglo-francês que anos antes se internara no Camboja vindo do Sião e morrera com as febres endémicas que dominavam a inóspita geografia do país. O Camboja era então um vassalo de Banguecoque, mas mantinha adereços de autonomia. O Rei mantinha corte, administração e exército. No exército e administração pontificavam os "portugueses": "muito imitativos (...) sentem orgulho em vestir-se com trajos europeus, alguns fatos segundo a moda do século XVII, especialmente entre os descendentes dos portugueses, que são numerosos" (2).
Artilheiros, intérpretes, guardas reais e remadores das barcas do Rei, proximidade atestando a grande confiança que neles depositavam - no Sudeste-Asiático, os reis eram figuras semi-divinas que nem de soslaio podiam ser olhadas - a comunidade "portuguesa" prosperou durante séculos, deixando marcas profundas na vida da corte. A comunidade católica portuguesa não era, contudo, uma relíquia blindada na recordação de grandes dias, nem sobrevivera graças a matrimónios endogâmicos. Ainda no século XIX, portugueses continuavam a chegar à capital. O mais famoso destes recém-chegados foi Kol de Monteiro (1839-1908). Prosperou, ganhou os favores do Rei e foi conselheiro real. O seu filho, Pitou de Monteiro, foi conselheiro dos ministros da Justiça e da Educação e um neto seu, Kenthao de Monteiro, educado em França, foi vice-presidente da Assembleia Nacional, Ministro da Educação e diplomata de reconhecido mérito, tendo ocupado funções de embaixador do Camboja na Jugoslávia, Taiwan e Egipto e recebido as mais altas condecorações por serviços prestados, a mais relevante das quais a de Cavaleiro da Legião de Honra, atribuída por De Gaulle durante a visita oficial do presidente francês ao Camboja. Morreu nos EUA, em 2006.
Hoje, tal como na Tailândia, a doçaria mais requintada é ainda a portuguesa. Os Samanah Meas, servidos no fim de repastos, não mais são que os nossos fios de ovos, figuram nos tratados gastronómicos da cultura cortesã khmer e são tidos como "doce nacional". Nos anos de 1950, a princesa Rasami Suthanot, tia do Rei Sianouk, compendiou velhas receitas cambojanas e considerou os "fios de ovos" a quinta-essência do bom gosto gastronómico. Outra marca da influência dos "portugueses" é língua. A moeda nacional do Camboja, o Riel, não é outra senão o nosso velho e desaparecido Real.
Em finais da década de 1950, o Camboja conseguira libertar-se da tutela francesa e ensaiava os primeiros passos na turbulenta política regional, já marcada pela investida comunista no Vietname. Nesses anos, privados do corpo administrativo colonial francês, as autoridades de Phenom Phen tiveram de recorrer às minorias étnicas mais operativas: os chineses, admirados e invejdos pelos seus talentos e riqueza; os sino-cambojanos, produto da miscegenação khmer-chinesa; os vietnamitas, muito odiados pela população e os euro-asiáticos. "Os euroasiáticos eram descendentes dos portugueses chegados ao Camboja no século XVII (...). Perderam desde então todos os traços fisiognómicos europeus, mas retêm os apelidos (...) portugueses: Men de Dias, Col de Monteiro, Norodom Fernandes. Possuem ainda influência na administração cambojana" (3). O rei Norodom Sihanouk, pai do actual monarca, teve como mimistros alguns portugueses, entre eles destacando-se membros da família De Monteiro, cujos sobreviventes se fixaram na Austrália após a tomada do poder pelos Khmeres Vermelhos.
Em 1975 - que foi ano de desgraça para todas as lusotopias, de Angola à Guiné, de Moçambique a Timor e também no Camboja - Phenom Pehn caíu nas mãos de Pol Pot e do Angka, designação pública para o invisível e misterioso Partido Comunista do Camboja. Depois, foram quatro anos de massacres e limpeza étnica de todos os "elementos impuros" da sociedade. Dois milhões de mortos - uma em cada quatro pessoas - e a imposição da Utopia agrária: evacuação das cidades, proibição do dinheiro, abolição da escola e da medicina ocidentais, bem como dos "bacilos" do colonialismo. A Igreja católica e o Islão - os Cham malaios, cuja população era maioritariamente urbana, logo mais exposta aos verdugos comunistas - foram objecto de particular animosidade, deles restando hoje poucos vestígios. Os templos foram dinamitados, os arquivos queimados, os sacerdotes sumariamente executados e os crentes distribuídos pelos campos de morte. Dos sessenta e cinco mil católicos que viviam no Camboja em 1975, menos de mil sobreviveram à fúria assassina dos comunistas. Quando o antropólogo francês me referiu o fim destes nossos irmãos - os Dias, os Silvas, os Pereiras e Fernandes de Phenom Phen - fui acometido de uma sensação de perda. Eles eram também, à sua maneira, nossos compatriotas, dizimados, afogados ou mortos à fome por serem diferentes, por serem cristãos, ou seja, por serem portugueses.
Hoje, tal como na Tailândia, a doçaria mais requintada é ainda a portuguesa. Os Samanah Meas, servidos no fim de repastos, não mais são que os nossos fios de ovos, figuram nos tratados gastronómicos da cultura cortesã khmer e são tidos como "doce nacional". Nos anos de 1950, a princesa Rasami Suthanot, tia do Rei Sianouk, compendiou velhas receitas cambojanas e considerou os "fios de ovos" a quinta-essência do bom gosto gastronómico. Outra marca da influência dos "portugueses" é língua. A moeda nacional do Camboja, o Riel, não é outra senão o nosso velho e desaparecido Real.
Em finais da década de 1950, o Camboja conseguira libertar-se da tutela francesa e ensaiava os primeiros passos na turbulenta política regional, já marcada pela investida comunista no Vietname. Nesses anos, privados do corpo administrativo colonial francês, as autoridades de Phenom Phen tiveram de recorrer às minorias étnicas mais operativas: os chineses, admirados e invejdos pelos seus talentos e riqueza; os sino-cambojanos, produto da miscegenação khmer-chinesa; os vietnamitas, muito odiados pela população e os euro-asiáticos. "Os euroasiáticos eram descendentes dos portugueses chegados ao Camboja no século XVII (...). Perderam desde então todos os traços fisiognómicos europeus, mas retêm os apelidos (...) portugueses: Men de Dias, Col de Monteiro, Norodom Fernandes. Possuem ainda influência na administração cambojana" (3). O rei Norodom Sihanouk, pai do actual monarca, teve como mimistros alguns portugueses, entre eles destacando-se membros da família De Monteiro, cujos sobreviventes se fixaram na Austrália após a tomada do poder pelos Khmeres Vermelhos.
Em 1975 - que foi ano de desgraça para todas as lusotopias, de Angola à Guiné, de Moçambique a Timor e também no Camboja - Phenom Pehn caíu nas mãos de Pol Pot e do Angka, designação pública para o invisível e misterioso Partido Comunista do Camboja. Depois, foram quatro anos de massacres e limpeza étnica de todos os "elementos impuros" da sociedade. Dois milhões de mortos - uma em cada quatro pessoas - e a imposição da Utopia agrária: evacuação das cidades, proibição do dinheiro, abolição da escola e da medicina ocidentais, bem como dos "bacilos" do colonialismo. A Igreja católica e o Islão - os Cham malaios, cuja população era maioritariamente urbana, logo mais exposta aos verdugos comunistas - foram objecto de particular animosidade, deles restando hoje poucos vestígios. Os templos foram dinamitados, os arquivos queimados, os sacerdotes sumariamente executados e os crentes distribuídos pelos campos de morte. Dos sessenta e cinco mil católicos que viviam no Camboja em 1975, menos de mil sobreviveram à fúria assassina dos comunistas. Quando o antropólogo francês me referiu o fim destes nossos irmãos - os Dias, os Silvas, os Pereiras e Fernandes de Phenom Phen - fui acometido de uma sensação de perda. Eles eram também, à sua maneira, nossos compatriotas, dizimados, afogados ou mortos à fome por serem diferentes, por serem cristãos, ou seja, por serem portugueses.
Alimento a derradeira esperança que alguns destes outrora milhares tenham sobrevivido. Talvez a Igreja portuguesa, o MNE e alguma fundação se pudessem associar e enviar uma missão de estudo ao Camboja, pedir a colaboração do governo desse país e proporcionar a esses nossos irmãos a ajuda necessária à restauração da dignidade social e cultural perdidas. Seria uma grande obra de restauração da presença indirecta de Portugal num país que renasce de uma das maiores tragédias do século XX. Lembrando Frei Gaspar da Cruz e Diogo do Couto, que à Europa deram em primeira mão notícia das grandezas da civilização khmer, aqui fica o recado para quem o quiser receber.
Sítio Internet da Igreja Católica do Camboja.
(1) BASTIAN, Adolf. A journey in Cambodia and Cochin-China (1864): Adolf Bastian's travels in South East Asia. Bangkok: White Lotus Press, 2005, vol. 3
(2) MOUHOT, Henry. Voyage dans les royaumes de Siam, de Cambodge, de Laos et autres parties centrales de l'Indochine. Londres: sn, 1863
(3) STEINBERG, David J. Camboja, its people, its society, its culture. New Haven: Hraf Press, 1959
(1) BASTIAN, Adolf. A journey in Cambodia and Cochin-China (1864): Adolf Bastian's travels in South East Asia. Bangkok: White Lotus Press, 2005, vol. 3
(2) MOUHOT, Henry. Voyage dans les royaumes de Siam, de Cambodge, de Laos et autres parties centrales de l'Indochine. Londres: sn, 1863
(3) STEINBERG, David J. Camboja, its people, its society, its culture. New Haven: Hraf Press, 1959