quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

A "questão dos sapatos"

O tema mantém plena actualidade. Em 1885, a pretexto do fincapé birmanês na estrita observância da etiqueta existente na corte de Ava /Mandalay - que obrigava os visitantes a retirar os sapatos à entrada da sala do trono, bem como o de não se apresentarem perante o Rei de chapéu e exibindo armas - os britânicos encontraram um casus belli para declaração de guerra, invasão e anexação do que sobrara do outrora poderoso reino da Birmânia.

As razões invocadas, atiçadas e servindo o declarado interesse da câmara do comércio britânico em Rangun (a outrora capital da Birmânia, ocupada no decurso da segunda guerra anglo-birmanesa, em 1852), epitomizam o desprezo dos ocidentais por tradições consideradas "bárbaras", mas mostram a que ponto a actividade diplomática é bifronte. A campanha anti-birmanesa começou na imprensa londrina, espalhou-se pelos jornais em língua inglesa do Raj, ecoou na Câmara dos Comuns e serviu de lançamento de Randolph Churchill (pai de Winston) para uma brilhante como rápida carreira política.
As acusações feitas aos birmaneses incidiram inicialmente sobre a "criminosa natureza do despotismo birmanês", dos defeitos e crueldade de carácter do Rei Tibhaw - um "criminoso" que era, afinal, um homem de cultura absorvida ao longo de sete anos num templo budista - das práticas selvagens de eliminação de adversários, do carácter pérfido das suas consortes, do ambiente de orgia do harém real. Era, o que se pode chamar, atiçar a canalha londrina e criar atmosfera que permitisse uma guerra popular.
Depois, subitamente, saído do nada, surgiu nos escapartes uma obra de Archibald Colquhoun intitulada "Burma and the burmans: the best unopened market in the world", depressa um êxito editorial pedindo consecutivas reimpressões. Meses volvidos, novas revelações fantásticas sobre a aquisição de armas feitas pelois birmaneses aos franceses - que concorriam com os britânicos do Sudeste-Asiático na abertura de uma fronteira económica com a China - e que essas poderosas armas poderiam cobrar a vida a milhares de mancebos britânicos, caso surgisse uma guerra.
A verdade é que a Birmânia se estava a modernizar e industrializar, que o Estado se estava a adaptar ao regime europeu de tributação, que a fiscalização sobre a actividade ilegal de madeireiros e garimpeiros britânicos encontrava crescentes obstáculos e que as exportações de arroz britânico para Mandalay iam declinando na proporção do crescimento da produção agrícola birmanesa, em acelerada fase de industrialização. Os madeireinos e os garimpeiros pagaram a jornalistas, pagaram a príncipes birmaneses exilados em Calcutá para entrevistas insultuosas ao Rei Tibhaw, fizeram lóbi nos Comuns e cobriram o Vice-Rei da Índia de prendas e abaixo-assinados; em suma, nada de novo, pois já o lóbi do narcotráfico havia feito o mesmo quarenta anos antes para encontrar desculpas para desencadear a "abertura do mercado chinês", naquela que ficou conhecida como a Primeira Guerra do Ópio.
Quando o caldo emocional estava preparado, o Vice-Rei da Índia enviou um Ultimato absolutamente inaceitável aos governo birmanês, exigindo coisas tão absurdas - sabendo de antemão que seriam tidas como impraticáveis - como a de um pedido pessoal de desculpas do Rei birmanês aos enviados britânicos, desculpas que teriam de ser feitas a bordo de um navio inglês, a exigência que os britânicos não se submeteriam a qualquer "prática humilhante" (retirar os sapatos) e que o Rei birmanês deveria punir os funcionários que se habviam limitado a aplicar as leis do país no combate aos especuladores madeireiros e garimpeiros.
O Rei não aceitou, obviamente. Ao expirar o prazo do Ultimato, dez mil soldados britânicos entraram em território da Birmânia do Norte, varreram sem dificuldade as débeis defesas do país, ocuparam a capital e deram "dez minutos, nem mais um" ao Rei para que entrasse numa carroça de bois. O Rei seguiu para o exílio na Índia britânica, os tesouros do palácio foram pilhados pela soldadagem britânica - um dos grandes tesouros do Sudeste-Asiático - e os madeireiros e garimpeiros apossaram-se de terras e minas do território. Em suma, há sempre que encontrar uma "questão de sapatos" para lançar guerras justas ao serviço dos plutocratas.
Começo a compreender o terror que aos birmaneses inspira a intromissão dos ocidentais nos seus assuntos internos.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Ano novo lunar com superstição e sabor português / เทศกาลตรุษจีนที่กรุงเทพมหานคร


Até 1932, quando aqui eclodiu a revolução constitucional, os tailandeses regiam-se por quatro calendários: o da era budista, o da era cristã, o ano lunar chinês e reinado do monarca em exercício. Hoje, limitam-se a contar o tempo pelo passamento do Iluminado (2552), pelo ano chinês e pela era cristã (2009).
Os últimos dias têm sido de festa pela entrada do ano do boi. A comunidade chinesa, já muito assimilada, faz os possíveis para manter a tradição, mas dizem-me os mais velhos que dentro de duas gerações pouco restará, porquanto os mais novos, totalmente desinteressados das suas raízes ancestrais, se limitam a festejar pelo prazer de quebrar a normalidade, como o fazem com o dia dos namorados, o Natal e outras festividades onde a dimensão comercial parece dominar.

Como manda o costume, fui a uma cartomante pedir contas ao futuro. A cartomante disse-me o que queria ouvir, pintalgou-o com romance, dinheiro, saúde e sucesso. Perguntei-lhe tudo o que queria. A pequena deusa com ares de procuradora do destino, asseverou-me que seria um ano cheio de dinheiro, boas notícias, uma viagem longa e um inesperado convite. Convite para quê ? Ahhhh, não sei, um convite. Pois, a viagem sei que a farei para visitar a família e o convite poderá limitar-se a um café pago por um amigo. Já não tenho ambições. Se me dissesse que me convidariam para ministro, fugia já para o Camboja ou para o Butão, recolhia-me a um templo e esperaria que se dissipasse o mau agoiro.
A grande manobradora em plena perscrutação do meu futuro. Acertou em tudo, não acertou em nada, pois tudo está por acontecer.
A conjugação do tarot. Poucos problemas, com a justiça e o imperador a velarem pela minha pálida estrela de exilado voluntário.

Para me libertar das estrelas e da sorte, acabei o dia a comer um frango à piri-piri num restaurante perto de minha casa, propriedade de um chinês de Hong Kong que abriu uma cadeia de comida portuguesa pela Ásia. Para mim acabou, finalmente, a festa do boi. Amanhã volto a referir-me ao ano em curso como 2009 ou, para os thais, 2552.

sábado, 24 de janeiro de 2009

Os portugueses exterminados por Pol Pot / คนโปรตุเกสในประเทศกัมภูชา

Um antropólogo francês, muito versado nas coisas do Camboja, informou-me como quem debita uma estatística, já não haver portugueses no Camboja. Nas suas andanças pelo país indagou, falou com os mais idosos das vilas das cercanias da capital, foi a Sianoukville (outrora Kampong Som) - único grande porto de mar do Camboja, onde outrora vivera numerosa comunidade católica - entrevistou sacerdotes católicos e nada; não há vestígios da comunidade portuguesa cambojana, tragada pelo vórtice genocida do regime comunista de Pol Pot.
Quando o aventureiro e explorador alemão Adolf Bastian esteve no Camboja na década de 1860, a comunidade católica era constituída quase integralmente por "portugueses". "Muitos dos cristãos são de ascendência portuguesa. O actual rei do Camboja [Norodom I] atribui parte da sua educação ao bispo católico [Monsenhor Michè]. (...) Os cristãos constituem a guarda de honra do Rei, que gosta de os observar enquanto fazem exercícios de fogo com artilharia pesada"(1).
Bastian seguira as pisadas de Henry Mouhot, um anglo-francês que anos antes se internara no Camboja vindo do Sião e morrera com as febres endémicas que dominavam a inóspita geografia do país. O Camboja era então um vassalo de Banguecoque, mas mantinha adereços de autonomia. O Rei mantinha corte, administração e exército. No exército e administração pontificavam os "portugueses": "muito imitativos (...) sentem orgulho em vestir-se com trajos europeus, alguns fatos segundo a moda do século XVII, especialmente entre os descendentes dos portugueses, que são numerosos" (2).
Artilheiros, intérpretes, guardas reais e remadores das barcas do Rei, proximidade atestando a grande confiança que neles depositavam - no Sudeste-Asiático, os reis eram figuras semi-divinas que nem de soslaio podiam ser olhadas - a comunidade "portuguesa" prosperou durante séculos, deixando marcas profundas na vida da corte. A comunidade católica portuguesa não era, contudo, uma relíquia blindada na recordação de grandes dias, nem sobrevivera graças a matrimónios endogâmicos. Ainda no século XIX, portugueses continuavam a chegar à capital. O mais famoso destes recém-chegados foi Kol de Monteiro (1839-1908). Prosperou, ganhou os favores do Rei e foi conselheiro real. O seu filho, Pitou de Monteiro, foi conselheiro dos ministros da Justiça e da Educação e um neto seu, Kenthao de Monteiro, educado em França, foi vice-presidente da Assembleia Nacional, Ministro da Educação e diplomata de reconhecido mérito, tendo ocupado funções de embaixador do Camboja na Jugoslávia, Taiwan e Egipto e recebido as mais altas condecorações por serviços prestados, a mais relevante das quais a de Cavaleiro da Legião de Honra, atribuída por De Gaulle durante a visita oficial do presidente francês ao Camboja. Morreu nos EUA, em 2006.
Hoje, tal como na Tailândia, a doçaria mais requintada é ainda a portuguesa. Os Samanah Meas, servidos no fim de repastos, não mais são que os nossos fios de ovos, figuram nos tratados gastronómicos da cultura cortesã khmer e são tidos como "doce nacional". Nos anos de 1950, a princesa Rasami Suthanot, tia do Rei Sianouk, compendiou velhas receitas cambojanas e considerou os "fios de ovos" a quinta-essência do bom gosto gastronómico. Outra marca da influência dos "portugueses" é língua. A moeda nacional do Camboja, o Riel, não é outra senão o nosso velho e desaparecido Real.
Em finais da década de 1950, o Camboja conseguira libertar-se da tutela francesa e ensaiava os primeiros passos na turbulenta política regional, já marcada pela investida comunista no Vietname. Nesses anos, privados do corpo administrativo colonial francês, as autoridades de Phenom Phen tiveram de recorrer às minorias étnicas mais operativas: os chineses, admirados e invejdos pelos seus talentos e riqueza; os sino-cambojanos, produto da miscegenação khmer-chinesa; os vietnamitas, muito odiados pela população e os euro-asiáticos. "Os euroasiáticos eram descendentes dos portugueses chegados ao Camboja no século XVII (...). Perderam desde então todos os traços fisiognómicos europeus, mas retêm os apelidos (...) portugueses: Men de Dias, Col de Monteiro, Norodom Fernandes. Possuem ainda influência na administração cambojana" (3). O rei Norodom Sihanouk, pai do actual monarca, teve como mimistros alguns portugueses, entre eles destacando-se membros da família De Monteiro, cujos sobreviventes se fixaram na Austrália após a tomada do poder pelos Khmeres Vermelhos.
Em 1975 - que foi ano de desgraça para todas as lusotopias, de Angola à Guiné, de Moçambique a Timor e também no Camboja - Phenom Pehn caíu nas mãos de Pol Pot e do Angka, designação pública para o invisível e misterioso Partido Comunista do Camboja. Depois, foram quatro anos de massacres e limpeza étnica de todos os "elementos impuros" da sociedade. Dois milhões de mortos - uma em cada quatro pessoas - e a imposição da Utopia agrária: evacuação das cidades, proibição do dinheiro, abolição da escola e da medicina ocidentais, bem como dos "bacilos" do colonialismo. A Igreja católica e o Islão - os Cham malaios, cuja população era maioritariamente urbana, logo mais exposta aos verdugos comunistas - foram objecto de particular animosidade, deles restando hoje poucos vestígios. Os templos foram dinamitados, os arquivos queimados, os sacerdotes sumariamente executados e os crentes distribuídos pelos campos de morte. Dos sessenta e cinco mil católicos que viviam no Camboja em 1975, menos de mil sobreviveram à fúria assassina dos comunistas. Quando o antropólogo francês me referiu o fim destes nossos irmãos - os Dias, os Silvas, os Pereiras e Fernandes de Phenom Phen - fui acometido de uma sensação de perda. Eles eram também, à sua maneira, nossos compatriotas, dizimados, afogados ou mortos à fome por serem diferentes, por serem cristãos, ou seja, por serem portugueses.
Alimento a derradeira esperança que alguns destes outrora milhares tenham sobrevivido. Talvez a Igreja portuguesa, o MNE e alguma fundação se pudessem associar e enviar uma missão de estudo ao Camboja, pedir a colaboração do governo desse país e proporcionar a esses nossos irmãos a ajuda necessária à restauração da dignidade social e cultural perdidas. Seria uma grande obra de restauração da presença indirecta de Portugal num país que renasce de uma das maiores tragédias do século XX. Lembrando Frei Gaspar da Cruz e Diogo do Couto, que à Europa deram em primeira mão notícia das grandezas da civilização khmer, aqui fica o recado para quem o quiser receber.

Sítio Internet da Igreja Católica do Camboja.
(1) BASTIAN, Adolf. A journey in Cambodia and Cochin-China (1864): Adolf Bastian's travels in South East Asia. Bangkok: White Lotus Press, 2005, vol. 3
(2) MOUHOT, Henry. Voyage dans les royaumes de Siam, de Cambodge, de Laos et autres parties centrales de l'Indochine. Londres: sn, 1863
(3) STEINBERG, David J. Camboja, its people, its society, its culture. New Haven: Hraf Press, 1959

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Comer na Chinatown de Banguecoque

Fazem-se já grandes preparativos para o ano novo lunar chinês, que ocorrerá este ano no próximo dia 25. Resolvi, pois, na companhia de um amigo chegado de Portugal, ir a Yaowarat (เยาวราช) bairro chinês de Banguecoque e lugar de peregrinação para os apreciadores de gastronomia sino-tailandesa. Como o movimento não cessa até às cinco da manhã, há quem ali também vá adqurir chá e fruta em lojas pertencentes à poderosa minoria chinesa. O bairro existe desde o século XIX e os chineses, mesmo que bem integrados nesta sociedade - que sempre foi multiétnica e multicultural - persistem em dar uma ambiência vincadamente chinesa às ruas, com o característico formigueiro da actividade, as incessantes cargas e descargas e, claro, o gosto pela comida. Dir-se-ia, em Yaowarat, que a China, com a sua persistente e vincada identidade, possuiu o exclusivo de se reproduzir fora do seu berço com tal naturalidade que parece assim ter sido sempre. Contudo, os chineses nem sempre foram bem recebidos neste país. Até aos anos 50, o chinês era um súbdito olhado de soslaio, um invasor cultural com tal desenvoltura que despertou apreensão de gerações de governantes. No início do século XX, tantos eram os chineses em Banguecoque que se suspendeu a abertura do regime autocrático e a sua inevitável evolução para um sistema representativo por medo da influência eleitoral que tal minoria poderia deter numa câmara de deputados. Nos anos 30, finalmente nacionalizados, aculturados e assimilados, os chineses diluíram-se no corpo social e converteram-se em leais cidadãos, ocupando hoje relevantes posições na vida económica e financeira, académica, cultural e política do país.
O jantar começou com um Kra-praw-pla, uma deliciosa sopa de estômago de peixe, com cogumelos chineses e caranguejo moído.

Seguiu-se um ped-yang, pato assado à moda chinesa, com gengibre, nabo chinês e molho de soja.
Como a fome apertava, veio um koy-jo, um bolo de caranguejo frito, servido com vegetais e molho agridoce. Para terminar, uma sobremesa ligeira, sem açúcar: o tao-huy-yen, gelatina de soja verde coberta de pêssegos e ananás. O acompanhamento foi feito com chá verde frio. Feitas as contas, pagámos 440 Bath, ou seja, 10 Euro.

domingo, 18 de janeiro de 2009

Estes estrangeiros que fizeram a Tailândia / ฝรั่งผู้นี้ได้ทำคุณประโยชน์ทางด้านศิลปะให้กับคนไทยและประเทศไทยเป็นอย่างมาก

Quanto mais progrido nos estudos thais, maiores as surpresas que se me vão deparando. A construção do Estado Moderno no Sudeste-Asiático data de meados do século XIX. Aqueles elementos definidores que a ciência política comumente aponta - população, território e soberania - mais as instituições que efectivam o exercício do poder (tribunais, forças armadas e policiais, burocracia) já qui existiam no quadro da Mandala siamesa (a monarquia "clássica e patrimonial) mas foi grande a engenharia de legitimação (interna como externa) que possibilitou o reconhecimento do Estado como entidade dotada de um passado e actualidade que tornassem possível a sua aceitação pela comunidade internacional e pela população ocupando o território. Aqui como na Europa Oitocentista, a construção da cidadania fez-se mais pela intepretação historiográfica, pela decantação do "espírito nacional" e suas realizações espirituais, literárias e arquitectónicas, que pelos elementos formais externos que a definem.
Já aqui havíamos falado dessa
plêiade de italianos expatriados aos quais coube a incumbência de fazer a mise en scène da monarquia absoluta sob os reinados de Rama V (1868-1910) e Rama VI (1911-1925). Nesse notável grupo de latinos contratados pelos reis destacou-se Corrado Ferocci (1892-1962), que chegou ao Sião em 1923. Coube-lhe descobrir e estudar as belas artes siamesas e interpretá-las à luz da História da Arte. No processo de modernização e ocidentalização que decorria, a xenomania permitiu a destruição de um património milenar, tido como escolho ao progresso. As artes tradicioais - o muralismo, a escultura sacra, a ourivesaria e a joalharia, a lacaria - haviam deixado de interessar, as encomendas da corte cessaram e os ofícios e seus mestres, morrendo por falta de estímulo, procuraram outras actividades. Qualquer cadeirão, peça ou pano, castiçal de gosto duvidoso, tapeçaria ou espelho vindo da Europa era disputado pelas famílias da aristocracia de sangue ou pela alta burocracia como marcas de civilização dos seus possuídores. Tudo se copiou. O Sião autocolonizava-se a partir do modelo europeu e a identidade - o fundamento da diferença e da liberdade de uma comunidade - ia-se apagando.
Na vigésima quinta hora, o Rei Rama VI - formado na Europa e muito impressionado com a teorização nacionalista - lançou um vasto programa educativo visando estancar a perda de identidade, fixar o carácter thai e reintroduzir práticas culturais em desuso. Assim, preservou o teatro e a dança tradicionais, reintroduziu as procissões das barcas reais, salvou da desaparição a literatura oral, defendeu a música e instrumentos ameaçados pela adopção da música ocidental, fundou os Arquivos e a Biblioteca Nacional e lançou um programa de conservação e restauro dos monumentos que, por falta de uso, haviam sido devorados pela floresta ou transformados em simples pedreiras. Para completar a restauração artística e cultural, convidou Ferocci para aplicar no Sião o modelo das escolas de belas artes europeias, com a dupla consigna da preservação da memória e estímulo à criatividade no quadro da cultura do seu tempo.

Pelo Sião ficou Ferocci durante três décadas, fazendo trabalho de valências múltiplas, ora como arquitecto de monumentos públicos - Monumento à Democracia: Anusawari Pracha-Athipathai = Monumento à soberania nacional, 1939-40; Monumento à Vitória / Anusawari Chai Samoraphum, 1942) - ora dedicando-se à investigação e publicação de extensos relatórios sobre o património artístico. Em 1943, com avultados meios proporcionados pelo governo fascista tailandês, criou a Universidade das Belas Artes de Silpakorn. Por esta altura, já falava, lia e escrevia correctamente o thai, pelo que se havia transformado num homem da terra. Rodeado de grande corte de admiradores, Ferocci tornou-se cidadão tailandês e passou a chamar-se Sin Phirasri (ศิลป์ พีระศรี). Ao regressar a Itália, no ocaso de uma vida plena, o Estado Tailandês tributou-lhe as maiores condecorações e honrarias. É hoje venerado pelos milhares de alunos da Universidade que fundou e até tem direito a efígie nos selos postais e moedas comemorativas. Todos os dias, pela manhã, aos pés da sua estátua são depostas flores e doces e do seu dedo pende um fio de algodão, símbolo da pureza longeva.


sábado, 10 de janeiro de 2009

Debate franco-português sobre o Sião / การถกเถียงระหว่างอาจารย์ชาวฝรั่งเศษกับอาจารย์ชาวโปรตุเกสเกียวกับประวัตติศาสตร์ประเทศสยาม


A convite de Xavier Galland - historiador francês aqui estabelecido e que tem publicada obra apreciável no domínio das relações franco-siamesas - travei hoje interessante debate na Faculdade de Belas Artes de Silpakorn. Muitos alunos e professores, curiosidade e alguma perplexidade por verem um português numa sessão sobre a cultura francesa na Ásia. Não houve nem mortos nem feridos na contenda, pois tratava-se de matéria há muito sanada:
- A imposição pela Santa Sé e da famigerada Propaganda Fide a Portugal da submissão aos vicários apostólicos que Luís XIV quis ver no sudeste-asiático;
- O ultraje do nosso Padroado do Oriente às mãos da Société des Missions-Étrangères;
- O clamoroso fracasso dos bons prêtres gauleses na conversão dos siameses;
- A revolução "xenófoba" de 1688 e o triunfo moral dos portugueses, que salvaram do esquartejamento os "bons padres" e continuaram em terras do Sião após a partida dos soldados que o Rei Sol aqui enviou.
Foi difícil, pois os predicados de Galland tornaram-me a tarefa penosa. Os franceses possuem a rara qualidade de falar bem e com éclat, expor com clareza e terem, sempre, a lição bem alinhavada. Eu, como português, vali-me da nossa emérita prosápia e capacidade do improviso, que sempre fazem o seu efeito devastador, pois perante tanta segurança tomam-nos por peritos. Eu, do Sião do século XVII pouco mais li que o Journal de l'abbé de Choisy, as Mémoires du comte de Forbin, a Relation des Révolution arrivée à Siam dans l'année 1688, de Desfarges e a bibliografia contemporânea que trata da revolução siamesa de 1688. Pois bem, mas guardara uma arma secreta para a utilizar no momento derradeiro.
A França aqui chegou com promessas de ajuda contra holandeses e britânicos, semeou copiosa intriga contra os portugueses, instalou-se e, no fim, quis obrigar o Rei Narai à conversão e estabelecer-se manu militari no Sião. Tratou-se de uma verdadeira intriga internacional. Em Versalhes, os padres das Missions Étrangères, protegidos pela amante do Rei (ou antes, sua mulher secreta, Madame de Maintenon), quiseram fazer crer ao Rei Cristianíssimo que o Sião estava maduro para aceitar a missionação e conversão a Roma. Foram ao Papa, mentiram-lhe e prometeram-lhe um novo Japão, ou seja, um absoluto sucesso de conversões.
Daí, com a ajuda de um aventureiro grego (Constantine Phalkon) que pelo Sião subira tão alto que se transformara em valido do rei de Ayuthia, encheram a cabeça do monarca siamês de projectos expansionistas, construíram-lhe um palácio de pedra e água corrente, edificaram-lhe um observatório astronómico e convenceram-no que grandes dias estavam para chegar. Phalkon, que trabalhara como embarcadiço na fleet da Honourable East India Company e que depois estivera em Java trabalhando por conta própria em negócios de "import-export" que roçavam a pirataria, era casado com uma luso-japonesa. Falava e escrevia bem a nossa língua, como se impunha a qualquer homem de negócios, pois que o português era e permaneceria até meados do século XIX língua franca nas relações internacionais do extremo-oriente e sudeste-asiático.
Mentiu a ingleses, trapaceou persas - que aqui possuiam importante actividade comercial - e tentou mentir aos portugueses. Os portugueses de então não eram propriamente ingénuos nestas andanças, pelo que tudo fizeram para impedir a aventura francesa, lesiva para os interesses portugueses e igualmente perigosa para a minoria católica luso-siamesa existente em Ayuthia. O Professor Galland ofereceu uma imagem vívida da embaixada do Rei Sol, encabeçada por um tolo arrogante que dava pelo nome de Chevalier de Chaumont, huguenote recém convertido ao catolicismo, logo mais católico que os católicos, mais zeloso na exibição da recente fé e cheio de afã apostólico roçando a agressividade. O Grego, sabendo os franceses absolutamente virgens em tudo o que tocava o protocolo asiático, disse ao embaixador de Luís XIV que o Rei de Ayuthia o receberia do cimo de uma varanda e que ele [embaixador] devia depositar a carta de Luís XIV numa bandeja de ouro. Depois e mil e um acertos, os franceses lá se predispuseram e foi realizada cerimónio de recepção em Lopburi, cidade a norte da capital. Ora, afinal o embaixador francês fez papel de vassalo, pois os vassalos do Sião não se podiam colocar à altura do Grande Rei Narai e limitavam-se a vê-lo de baixo.
Foi aqui que lancei a minha V2 de algibeira. Tirei da carteira a Embaixada ao Sião de Pero Vaz de Siqueira (1684-1686), transcrita na íntegra do pó dos arquivos por Leonor de Seabra, traduzida magistralmente para o inglês por Alan Baxter e publicada em 2005 pela Universidade de Macau graças ao empenho do Professor António Vasconcelos de Saldanha enquanto Presidente do Instituto Português do Oriente. Nesse extenso relato de 400 páginas, o que salta à vista é coisa que espantou os nossos amigos franceses: o Embaixador português não foi recebido na varanda, sentou-se frente ao Rei Narai de botas e espada e com ele travou de igual para igual as matérias relevantes da missão que o levava ao Sião. Assim, para os siameses, as únicas relações de Estado a Estado eram com Portugal e os outros, franceses, ingleses e holandeses estavam ao mesmo nível das delegações de Patani, dos Shan, dos principados laocianos e outros tributários. Era como se quisessem fazer crer ao actual embaixador de França em Banguecoque que o Rei tailandês só o recebia se aquele se deitasse ao comprido no chão e o saudasse com as mãos em posição de oração um pouco acima da testa ! Os franceses fizeram-no e o Rei siamês pensou que não passavam de enviados de um seu admirador na distante Europa.
Enganados os franceses, tratou-se de enganar os siameses, enviando-lhes uma embaixada a França para fazer crer ao Rei Sol que novos súbditos se haviam constituído no remoto Oriente. A embaixada, a bordo do Soleil D'Orient - com elefantes, animais exóticos, muito ouro e prata - afogou-se nas Tormentas. Nova embaixada se preparou, desta vez com arribada bem sucedida à Europa. Ora, em Versalhes, o embaixador siamês Kosa Pan, foi confrontado com a imposição da "ajuda militar" francesa ao Sião; por outras palavras, como se hoje um qualquer governo pedisse ajuda à França e esta lhe enviasse, não conselheiros e meios, mas um exército. Assim chegaram ao outro extremo do mundo seis meses depois. Lançaram pé em terra e ocuparam Banguecoque. Logo,
um levantamento nacional anti-francês levou a um golpe palaciano, o Grande Rei Narai "foi acometido de morte súbita" e o seu valido Grego despedaçado. Caçados como lebres, os franceses fugiram e acabou em tragédia uma enorme teia de mal entendidos. A França estava, decididamente, virgem em tudo que ao Oriente dizia respeito. Por tais paragens só se voltariam a ver em meados do século XIX !
Foi uma tarde bem passada entre pessoas inteligentes e dialogantes, tratando daquilo que me apaixona; ou seja, do passado, pois que o presente pouco me diz. Talvez daqui a trezentos anos me venha a interessar pelas andanças da politiquice portuguesa e siamesa de inícios do século XXI.


Publicado em Combustões, 10.01.2009

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

O único homem livre da Birmânia

A estupidez inteligente e as vozes informadas só se referem a Aung San Suu Kyi quando se trata de apresentar o rosto de uma Birmânia em luta pela liberdade e pelos direitos civis. Se Aung San Suu Kyi é filha e herdeira política testamentária de Aung San - ex-comunista convertido à variante japonesa do fascismo, cavaleiro da Ordem do Sol Nascente por imposição directa do imperador Hirohito, em 1943 - há um outro homem em Yangoon (Rangun) que inspira terror à ditadura militar. Trata-se do príncipe Tan Paya, neto do rei Thibaw, último da dinastia Konbaung, afastado do trono pelos britânicos em 1885, no rescaldo da terceira guerra anglo-birmanesa e enviado para o exílio na Índia, onde morreu quase na miséria em 1916.
Se a activista anti-regime pode ser retida em prisão domiciliária, os seus partidários mortos, espancados ou atirados para o exílio, num príncipe de sangue ninguém se atreve tocar. O ancião diz o que pensa num país onde pensar é quase um delito, deliciando-se quando afirma, referindo-se ao estado degradante de controlo a que chegou o país que "se alguém dá um flato cá em casa, há sempre alguém que leva a nova à Junta Militar". Os militares temem-no, pois Tan Paya é um símbolo de uma velha Birmânia pré-colonial onde o rei era tido como um deus vivo. Cometer o sacrilégio de atentar contra a vida de um homem com tal árvore genealógica é caminho certo para uma reencarnação descendente, pelo que os generais fingem não compreender este homem que se recusa vestir como um colonizado, recebe em sua casa jornalistas ocidentais, se recusa prestar fidelidade à constituição e se refere à Birmânia como "o meu país". Os tiranos abominam os reis, que lhes lembram a sua insignificância passageira, mas raramente se atrevem tocar-lhes. Só nós, portugueses - ou antes, "eles", os tais que tinham 5% em 1910 - quiseram resolver o destino do país matando o Rei na praça pública. Ou seja, neste particular, os republicanos portugueses excederam largamente o atrevimento homicida da Junta Militar birmanesa.