É assim que se vive o patriotismo, evocando o passado que não pode ser negado e olhando para o futuro com a tremenda responsabilidade que está nas mãos daqueles que querem um
Portugal livre, independente e orgulhoso. Hoje não deve haver português em parte alguma do mundo - o Portugal para além dos oceanos e das montanhas, o Portugal das comunidades em diáspora e o Portugal dos luso-descendentes - que não sinta esse chamamento. Banguecoque celebrou hoje com grande dignidade o Dia de Camões, oferecendo um belo espectáculo de fado na voz de Carminho, que encheu o auditório do Sun Wattatatam Hêeng Phrathét Thay (Centro Cultural da Tailândia). Fiquei surpreendido com a voz, poderosa e dominadora, mas mais espantado com a facilidade com que dominou um auditório desconhecedor da nossa língua. Ao cantar a Bia da Mouraria, o público ovacionou demoradamente e rendeu-se à jovem portuguesa. Depois, foi uma sucessão de reentradas entre fortes aplausos. E dizem que o fado é coisa portuguesa ! Ora, hoje foi dia de fado tailandês.
À saída, entre o corpo diplomático e as autoridades tailandesas, forte representação da comunidade católica portuguesa-siamesa que aqui vive desde o século XVI, gente apegadíssima a Portugal e fiéis entre os fiéis ao nosso bom nome. É comevedor saber que esta comunidade, que a tudo sobreviveu - a guerras, perseguições e até à estupidez de Lisboa - se sente tão portuguesa como nós e ainda espera que num qualquer ministério alguém se lembre que no outro lado do mundo há pessoas que exibem com altivez os apelidos Siqueira, Costa, Antunes e Pereira. Perguntem aos holandeses, franceses e britânicos se têm gente desta. Não, porque fomos diferentes e é nessa diferença que reside a nossa sobrevivência. Sim, somos como os judeus. Resistimos teimosamente e parece que a a todas provações podemos sobreviver.
O Embaixador António de Faria e Maya não deixou passar a oportunidade para os lembrar, agradecendo-lhes em nome do Chefe de Estado tudo quanto têm feito para manter na Tailândia o nome de Portugal. Falou em inglês e em Português. Os nossos luso-siameses ficaram emocionados, pois há entre eles um tão fervoroso culto da pátria distante que algumas famílias, com grande sacrifício, enviam os filhos a Portugal para aí aprenderem a língua dos seus avós. O Instituto Camões bem podia atribuir anualmente meia dúzia de bolsa de estudo a estes outros portugueses nascidos nas margens do menam Chao Phraya.
Acabado o espectáculo, recepção e jantar na embaixada de Portugal. E que jantar, com direito ao bacalhau que não via desde 2007, o vinho das nossas adegas e a doçaria portuguesa conventual que os thais tão bem conhecem, pois adoptaram-na como sua desde que Maria Guiomar de Pina a ensinou aos mestres culinários da corte siamesa em Ayuthia.
A um canto, sentado aos pés de um retrato da nossa D. Maria I, um diplomata luso-canadiano, ex-embaixador do Canadá em Singapura, homem culto e grande conhecedor da nossa história asiática. Conversa interessante, com partilha plena de pontos de vista e uma esperança que teima em não morrer num Portugal restaurado. Soube-me o breve diálogo tão bem como o café. Afinal, Portugal não conhece cartões de identidade e passaportes. Portugal é uma ideia. Acudiu-me de novo a letra da Bia da Mouraria: "embora qualquer dos noivos tenha pouco mais que nada". Isto soa-me ao nosso patriotismo. Não importa saber se somos ricos ou pobres, se os outros têm os bancos e as negociatas que conspurcam o mundo. O importante é saber mantermo-nos portugueses e impedir que nos transformemos em gente de bazar. Um amigo chamou-me a atenção pela não exibição da bandeira europeia na cerimónia da tarde. Pensei no assunto. Erro protocolar, omissão ? Depois, falando com os meus botões concordei: a Europa não é aqui chamada para nada. Nós somos do mundo, um pouco na Europa, muito nas Américas e em África, um bom pedaço na Ásia. Ora, não precisamos da Europa para nada.
Publicado em Combustões, 10.06.2009