Ontem estive todo o dia deprimido. Pela televisão recebi a tremenda notícia: o edifício da Siam Society fora tragado por um incêndio devastador. Ao longo dos últimos dois anos, a Siam Society foi uma segunda casa. Ali passei milhares de horas naquela que é uma das melhores bibliotecas especializadas em bibliografia e documentação sobre o Sudeste-Asiático e recebi sempre dos funcionários e dirigentes um caloroso acolhimento e apoio. Para minha casa trazia todas as semanas uma ou duas obras requisitadas, livros raros, comprados um pouco por todo o mundo - em espanhol, francês, inglês, italiano, alemão e até português - por esse grupo de animadores e entusiastas do património histórico e cultural siamês que tem mantido a Siam Society desde 1905. A história cultural contemporânea do país cruza-se com a instituição. Ali passaram ao longo de um século os mais autorizados investigadores estrangeiros, ali se reuniram, realizaram palestras e escreveram obra os mais influentes homens de cultura da Tailândia. De repente, num ápice, um fogo propagou-se e ameaçou de morte tanto labor e dedicação.
Recomposto, liguei a uma das dirigentes e ofereci os meus modestos préstimos. Como sou bibliotecário, talvez precisassem do meu contributo. Disseram-me que por lá passasse hoje após o almoço. Fui encontrar o belo edifício ainda fumegante, telhados contorcidos, paredes desfeitas e o jardim transformado num lodaçal pelas mangueiras dos bombeiros. Perante o desastre, revelou-se-me, uma vez mais, a nobreza dos thais. Os funcionários da Siam Society transformaram um alpendre em escritório e ali estavam registando telefonemas, recebendo obras requisitadas, informando os sócios e listando donativos. Esta gente tem um grande coração e uma enorme capacidade para fazer frente a desafios como este. Julgo que é em momentos de adversidade que as pessoas se revelam. Não vi pieguices nem lágrimas. Rostos compenetrados e sérios, palavras mansas mas decididas, projectos por realizar, ideias para o futuro, foi tudo quanto vi e ouvi nesta visita fúnebre aos despojos da Siam Society. Perdeu-se a livraria, os escritórios e toda a documentação ardeu, mais computadores, impressoras, mobiliário, bases de dados, a revista que aguardava lançamento, pinturas e esculturas.
Felizmente, a grande biblioteca, mais a mapoteca, os manuscritos e a hemeroteca sofreram danos leves. O fogo, irracional e caprichoso, escolheu coisas menores. Um frio de regelar, húmido e pestífero das cinzas flutuantes, invade a biblioteca. Sobre milhares de obras caiu um pó negro como um crepe sobre um cadáver. Aquilo que demorou cem anos a fazer quase morreu em vinte minutos. Lembro os dias felizes que ali passei, no conforto da bela sala de leitura, lembro a brilhante conferência que o Professor Vasconcelos de Saldanha ali proferiu em Março passado, o calor dos aplausos e o entusiasmo por ali ressoar o nome da velha aliança que une desde 1511 Portugal ao Sião.
Portugal poderia, na medida das suas possibilidades, oferecer-se para engrossar o número de países e instituições que já exibiram consternação pelo trágico evento. Por mim, estou disposto a trabalhar graciosamente em qualquer projecto.
Portugal poderia, na medida das suas possibilidades, oferecer-se para engrossar o número de países e instituições que já exibiram consternação pelo trágico evento. Por mim, estou disposto a trabalhar graciosamente em qualquer projecto.
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