segunda-feira, 29 de junho de 2009

Bangkok recebe herói português (1924)

"Quando entramos no vale do Menam (...), a planície alonga-se em várias em vastas campinas de vegetação baixa que nos atraem, num convite mudo a voar mais baixo, sob um céu de iluminura, tão azul como o céu de Portugal. Não há estradas. Apenas uma linha férrea riasca na coloração uniforme do terreno, um traço de carvão. Sobre Ayuthia, os campos alagados recomeçam e o voo retoma o seu carácter de farandola irritante. Perto das duas horas, a esplanada do aeroporto de Don Muang recorta-se como quadrilátero branco no horizonte. E aterra-se com prazer, porque a pista é magnífica e o voo durou cinco horas e quinze minutos.A aviação siamesa recebe-nos como todas as aviações nos receberam: espírito de classe, entusiasmo, simpatia e amizade. O general comandante da base, que nos esperava no campo com vários oficiais, informa-nos em francês de que temos à nossa disposição uma equipa de mecânicos e o combustível necessário para enchermos os depósitos. É necessário substituir um cabo de comando do leme de profundidade e remendar a tela da fuselagem. Disto informamos o director do hangar de montagem, oficial piloto que nos escuta atentamente, e a quem deixamos entregue o Pátria II. Pelas quatro horas, tomamos lugar no comboio que nos leva a Banguecoque, vinte quilómetros ao sul, e ali somos recebidos pelo Chefe de Estado-Maior, irmão do rei, e pelo cônsul interino de Portugal, italiano melífluo e poseur que tem para connosco atitudes cerimoniosas de ministro.Para sermos recebidos no consulado é necessário que nos anunciem com alguns minutos de antecedência e que esperemos um quarto de hora num salão de mau gosto, com pretensões a Luís qualquer-coisa. Oferece-nos [o cônsul] um jantar no hotel, e reflecte-se-lhe na face bem barbeada, cuidadosamente barbeada, que uma camada de pó-de-arroz amacia, a indiferença que lhe merecemos e a amabilidade forçada do cargo oficial. No clube, porém, há um minuto de verdadeiro entusiasmo, entre franceses, ingleses e aviadores siameses, que brindam pelo nosso êxito, sinceramente. Modesto, quase humilde, o macaense Joaquim António é uma alegria íntima a querer traduzir-se em palavras, a querer expandir o que sente. Nas lembranças que nos oferece, as suas mãos põem frémitos de dedicação espontânea, de simplicidade cativante.Na manhã do dia seguinte – 10 de Junho – o comboio leva-nos de novo a Dawn Muang, de onde não conseguimos descolar por se encontrar avariada uma das bombas elevatórias de gasolina, cuja reparação indicamos como deve ser feita e fica entre mãos de um mecânico siamês.Para matar o tempo e tédio, percorremos as instalações das oficinas e depósito de Dawn Muang, que nos surpreendem, que nos maravilham – e porque não confessá-lo ? – que nos entristecem ao recordar a miséria em que vive a nossa aviação.Na pista imensa (cerca de dois quilómetros quadrados de terreno), os oito hangares de alvenaria deixam ver pelas grandes portas abertas, numerosos aviões de escola, de caça, de bombardeamento, de observação, limousines e ambulâncias. Esta multiplicidade de tipos de avião resume-se, contudo, a três únicas marcas: o Nieuport, para escola; o Nieuport-Delage para caça; e o Breguet para o resto.Não muito longe, as oficinas em cujo acabamento se trabalha, estão cheias do labutar ruidoso das máquinas que preparam material para os aparelhos, cuja célula é inteiramente construída ali, sendo exclusivamente importada parte do material de construção e o motor. O serviço postal aéreo, feito por oficiais do exército, funciona regularmente, trazendo para a aeronáutica uma receita importante. E como os setenta e dois aeródromos que polvilham o território siamês inspiram confiança aos amantes do ar, o número de passageiros vai aumentando dia-a-dia. A gente observa, escuta, e inconscientemente compara. Como é grande, na realidade, a diferença entre o critério dos governantes siameses e o da maioria dos governos portugueses... Ali, naquela nação longínqua dos confins da Ásia, onde julgávamos encontrar um povo selvagem, a aviação é olhada como arma indispensável na paz e na guerra. Por certo, se pretendermos compará-la com os exércitos aéreos das grandes potências, o Sião está longe de ter atingido aquele desenvolvimento colossal. Pequena potência como nós, no entanto, a sua aviação pode ser considerada já como modelar."

BEIRES, José Manuel Sarmento de. De Portugal a Macau: a viagem do Pátria. Lisboa: Seara Nova, 1925

sábado, 27 de junho de 2009

Bairro católico de Bangkok / โบส์ซางตาครู๊ตที่ธนบุรี


Elsa Resende, jornalista da Lusa que aqui esteve a convite do governo tailandês, deixou o seguinte testemunho da sua visita ao "bairro português" da capital tailandesa. A ler com atenção, pois revela a sobrevivência de uma comunidade que manteve com coragem e tenacidade o orgulho da sua ascendência.


Jirawach Wongngernyuang não chegou a conhecer o seu bisavô, mas foi por causa dele que aprendeu português. O jovem é o único luso-tailandês que fala o idioma dos seus antepassados num bairro católico da cidade budista de Banguecoque. O bairro chama-se Santa Conceição e fica numa das margens do rio Chao Phraya, na zona de Dusit. O seu nome deve-se à Igreja da Imaculada Conceição, construída em 1837por missionários franceses no local outrora ocupado por uma igreja portuguesa. Atrás da Igreja da Imaculada Conceição há uma outra igreja, mais pequena, construída em 1674 pelo padre Luís Laneau para a comunidade portuguesa.Hoje, vivem em Santa Conceição 1.500 tailandeses, 90 por cento dos quais católicos devido à influência, no passado, dos missionários cristãos europeus. Vinte e uma famílias têm ascendência lusa. Jirawach Wongngernyuang, 21 anos, é um dos membros dessas famílias. O seu bisavô paterno, Pinto Dias, de quem tem poucas referências, era português. Foi embaixador na Itália ao serviço da Tailândia durante dez anos e morreu antes do jovem nascer, encontrando-se sepultado no cemitério católico, por trás da Igreja da Imaculada Conceição.É também neste cemitério que está o jazigo da família Costa, o único que conserva inscrições em Português e que remonta à primeira metade do século XIX. Jirawach Wongngernyuang conheceu Portugal há quatro anos quando, ao abrigo de um intercâmbio escolar, foi estudar para Algueirão, no concelho de Sintra, onde completou o liceu ao fim de uma estada de dez meses.O seu interesse pela língua de Camões deve-se ao bisavô Dias porque o avô e o pai, ambos tailandeses, não sabem português. "Como tinha família [de ascendência] portuguesa, quis aprender a língua", justifica à Agência Lusa, num português perceptível mas que necessita de ser aperfeiçoado. O jovem é o único membro da sua família e da comunidade luso-tailandesa de Santa Conceição que fala e escreve português. No ano passado, voltou a Portugal para rever a família Bica, que o acolheu durante o tempo em que estudou em Algueirão, e os "muitos amigos" da escola, com quem comunica, em português, através da Internet. "Assim vou praticando...[a língua]", refere. Deseja ir novamente a Portugal, mas desta vez com os pais e a irmã, que não conhecem o país e com quem vive numa apertada e rudimentar casa em Santa Conceição.Jirawach não sabe quando é que o desejo será cumprido, "a viagem é cara". Estuda em Banguecoque, a cidade-capital colorida da Tailândia feita de contrastes, a metrópole dos táxis amarelos, rosa, azuis, laranjas e verdes, do emaranhado de bancas de rua de fruta, flores, bugigangas e artigos falsificados, dos arranha-céus colados aos templos budistas.Jirawach toca numa banda de "hard rock" e quer ser piloto da aviação civil.Em Portugal, viveu como qualquer estudante português, com a diferença de que, nos primeiros três meses, apenas sabia sorrir, como bom tailandês que se preze, e dizer "olá".Agora que se ajeita no português, deposita a esperança de, tirado o "brevet", trabalhar numa companhia aérea e voar regularmente para a terra do bisavô, que quer conhecer melhor.
Publicado in Combustões em 27.06.2009

terça-feira, 16 de junho de 2009

Tailândia incia delebrações da chegada dos portugueses

Teve hoje lugar na embaixada de Portugal em Banguecoque um jantar de boas-vindas a uma delegação de jornalistas portugueses convidados pelo governo tailandês no quadro de iniciativas preparatórias de sensibilização visando a celebração dos 500 anos da chegada dos portugueses ao antigo reino do Sião. A Visão, o Diário de Notícias, a TVI e a Agência Lusa percorrerão nos próximos dias os locais marcantes na longa história dessas relações, oportunidade única para conhecer in loco o património arqueológico, museológico e outras marcas profundas que Portugal aqui deixou.

Para além dos profissionais da comunicação social, acudiram ao convite do Embaixador Faria e Maya altos funcionários do MNE tailandês, jornalistas tailandeses, a representação da comunidade luso-descendente e o director da mais cotada revista cultural tailandesa, o historiador Krairoek Nana.

À comunidade portuguesa vivendo em Banguecoque foi pedida colaboração na prestação de depoimentos sobre experiências quotidianas de vida na Tailândia, bem como breves comentários sobre o espírito das celebrações de 2011. Como historiador, foi-me solicitada uma curta entrevista para a TVI, no decurso da qual tentei sintetizar a importância desta relação única nos anais da história diplomática mundial.
Parece que, finalmente, os tailandeses estão a dar os passos decisivos na convocação das melhores inteligências e boas vontades para a realização de um intenso programa que integrará exposições, séries documentais, traduções de testemunhos portugueses, simpósios e outros actos de natureza académica, protocolar e social.


Publicado em Combustões em 16.06.2009

quarta-feira, 10 de junho de 2009

10 de Junho em Bangkok / วันชาติโปรตุเกสที่กรุงเทพมหานคร


É assim que se vive o patriotismo, evocando o passado que não pode ser negado e olhando para o futuro com a tremenda responsabilidade que está nas mãos daqueles que querem um
Portugal livre, independente e orgulhoso. Hoje não deve haver português em parte alguma do mundo - o Portugal para além dos oceanos e das montanhas, o Portugal das comunidades em diáspora e o Portugal dos luso-descendentes - que não sinta esse chamamento. Banguecoque celebrou hoje com grande dignidade o Dia de Camões, oferecendo um belo espectáculo de fado na voz de Carminho, que encheu o auditório do Sun Wattatatam Hêeng Phrathét Thay (Centro Cultural da Tailândia). Fiquei surpreendido com a voz, poderosa e dominadora, mas mais espantado com a facilidade com que dominou um auditório desconhecedor da nossa língua. Ao cantar a Bia da Mouraria, o público ovacionou demoradamente e rendeu-se à jovem portuguesa. Depois, foi uma sucessão de reentradas entre fortes aplausos. E dizem que o fado é coisa portuguesa ! Ora, hoje foi dia de fado tailandês.

À saída, entre o corpo diplomático e as autoridades tailandesas, forte representação da comunidade católica portuguesa-siamesa que aqui vive desde o século XVI, gente apegadíssima a Portugal e fiéis entre os fiéis ao nosso bom nome. É comevedor saber que esta comunidade, que a tudo sobreviveu - a guerras, perseguições e até à estupidez de Lisboa - se sente tão portuguesa como nós e ainda espera que num qualquer ministério alguém se lembre que no outro lado do mundo há pessoas que exibem com altivez os apelidos Siqueira, Costa, Antunes e Pereira. Perguntem aos holandeses, franceses e britânicos se têm gente desta. Não, porque fomos diferentes e é nessa diferença que reside a nossa sobrevivência. Sim, somos como os judeus. Resistimos teimosamente e parece que a a todas provações podemos sobreviver.


O Embaixador António de Faria e Maya não deixou passar a oportunidade para os lembrar, agradecendo-lhes em nome do Chefe de Estado tudo quanto têm feito para manter na Tailândia o nome de Portugal. Falou em inglês e em Português. Os nossos luso-siameses ficaram emocionados, pois há entre eles um tão fervoroso culto da pátria distante que algumas famílias, com grande sacrifício, enviam os filhos a Portugal para aí aprenderem a língua dos seus avós. O Instituto Camões bem podia atribuir anualmente meia dúzia de bolsa de estudo a estes outros portugueses nascidos nas margens do menam Chao Phraya.
Acabado o espectáculo, recepção e jantar na embaixada de Portugal. E que jantar, com direito ao bacalhau que não via desde 2007, o vinho das nossas adegas e a doçaria portuguesa conventual que os thais tão bem conhecem, pois adoptaram-na como sua desde que Maria Guiomar de Pina a ensinou aos mestres culinários da corte siamesa em Ayuthia.

A um canto, sentado aos pés de um retrato da nossa D. Maria I, um diplomata luso-canadiano, ex-embaixador do Canadá em Singapura, homem culto e grande conhecedor da nossa história asiática. Conversa interessante, com partilha plena de pontos de vista e uma esperança que teima em não morrer num Portugal restaurado. Soube-me o breve diálogo tão bem como o café. Afinal, Portugal não conhece cartões de identidade e passaportes. Portugal é uma ideia. Acudiu-me de novo a letra da Bia da Mouraria: "embora qualquer dos noivos tenha pouco mais que nada". Isto soa-me ao nosso patriotismo. Não importa saber se somos ricos ou pobres, se os outros têm os bancos e as negociatas que conspurcam o mundo. O importante é saber mantermo-nos portugueses e impedir que nos transformemos em gente de bazar. Um amigo chamou-me a atenção pela não exibição da bandeira europeia na cerimónia da tarde. Pensei no assunto. Erro protocolar, omissão ? Depois, falando com os meus botões concordei: a Europa não é aqui chamada para nada. Nós somos do mundo, um pouco na Europa, muito nas Américas e em África, um bom pedaço na Ásia. Ora, não precisamos da Europa para nada.
Publicado em Combustões, 10.06.2009