segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Curiosidades tailandesas: sem medos e sem as vergonhas ocidentais

Sou distraído, pelo que só recentemente me dei conta de uma prática aqui muito arreigada, interpretada como supino gesto de cavalheirismo. Na Tailândia, quando os casais se passeiam, os namorados/maridos insistem em transportar a mala do seu par. Já cheguei a ver oficiais de alta patente, carregados de medalhas, transportando airosamente nas mãos uma malinha cor-de-rosa com arreios dourados.
Todos os actos delicados passam por suphab (educação) ou nissay dii (bom comportamento), pelo que as senhoras ficam Kreng Jáy (agradecidas e em dívida) para com tais manifestações.
Não me atrevi violar ostensivamente a privacidade das pessoas, mas pelos dois exemplos fotografados [de costas] fica a sugestão. Aqui, marido e mulher vão juntos ao cabeleireiro e à manicure, enchem a casa e a cara de cremes e até parece que partilham o make-up. Enfim, um monumento à igualdade. Entre nós, saídos recentemente do neolítico, até se exigia que os homens cheirassem a cavalo e se rissem sobranceiramente das colónias e dos roll-one. O mundo é um espectáculo de diferenças.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Povo mágico, povo de mágicos

Os siameses pelam-se por astrologia, quirologia, adivinhação, magia, numerologia, nigromância e espiritismo. São, sem tirar, iguais aos gregos e romanos da Antiguidade, pois a cepa comum indo-ariana plasmada pelo sânscrito - essa língua universal do conhecimento isotérico - criou uma comum visão do mundo que cobriu um largo arco geográfico que ia do Sudeste-Asiático ao Tibre e só foi destruída pelo advento do cristianismo. Os thais são, assim, um "povo antigo", com um "conhecimento antigo" no qual não há fronteiras claras entre o racional e o irracional, o sagrado e o profano, o temporal e o espiritual, o mundo dos deuses e o mundo dos homens. Tudo para eles é entendido como manifestação de poderes imanentes que não podem ser contrariados, mas apenas atenuados pela elevação espiritual de cada um. Ao contrário do que deste entendimento da vida escreveram duas ou três gerações de positivistas europeus, o conhecimento oculto não é fonte de alienação, mas segurança, não gera o fatalismo, mas fortalece os indivíduos nas afições, não semeia o desespero, mas alimenta a esperança. Quando confrontados com grandes desastres, os thais lançam mão de todos os recursos, falam com todos os deuses, franqueiam todos os templos - budistas, protestantes, católicos, jainistas, hindús - e pedem ajuda. A lógica parece ser: quantos mais deuses tiver do meu lado, mais facilmente poderei sair desta aflição. Este ecletismo e sincretismo religiosos são bem patentes. As pessoas trazem consigo, pendendo no peito, amuletos pré-budistas, imagens do Buda e crucifixos. Depois, tatuam-se com fórmulas propiciatórias que outrora se dizia permitirem imunidade contra os espíritos malignos e facultavam ora a invisibilidade, ora repeliam as armas dos inimigos.

Um dos filões mais produtivos da indústria cinematográfica local é, como não poderia deixar de ser, as fitas sobre Pí (espíritos) e o tema de conversa mais apetecido, para além da comida, são questões de natureza religiosa. As pessoas lêem avidamente, tal como no Ocidente medieval acontecia, textos edificantes: vidas de monges, jatakas do Buda - vidas anteriores do Iluminado - experiências de meditação nos "templos da floresta", sonhos e até viagens ao mundo do além.


Um dos fascínios dos thais é a magia. A patetice de alguns europeus interpreta este fascínio como demonstração de infantilidade. Como povo lúdico, os thais encontram na magia um divertido jogo de fintar as "leis naturais", ludibriar os sentidos, brincar com as certezas de cada um. Porém, mais profundo que o inocente divertimento, demonstra-se a Annica (ou impermanência), que é uma das grandes certezas do budismo. Tudo está em mudança e até as leis naturais podem ser contrariadas. Escandalizavam-se os missionários católicos franceses com o Rei Taksin (1767-1782) quando este lhes afirmava que se havia finalmente libertado das leis da atracção e que podia voar.
Em Banguecoque há centenas de bancas de magia. Vai-se ao astrólogo, ao vidente, ao intérprete de sonhos como se vai ao médico. Ali correm milhões dos bolsos aflitos, mas também correm milhões pela atracção pelo desconhecido. Recentemente, a magia também se colocou ao serviço dos turistas. Com um grande sorriso, os mágicos oferecem nas ruas sessões de magia ao alcance de qualquer um e, terminada a exibição, vendem os produtos e os segredos de mágica aos farangues (estrangeiros brancos). O mágico da foto realizou a proeza de vender em cinco minutos 50 Euro de produtos a três europeus extasiados. É o caminho das estrelas.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Dolorosas novas

Encontrei ontem doloroso testemunho da tragédia portuguesa de 1908. Datada de 15 de Fevereiro - uma semana após o regicídio - assinada por D. Manuel II, a carta anunciava ao Rei Chulalongkorn do Sião o passamento do Rei D. Carlos I e do Príncipe Real D. Luís Filipe. Mais que uma breve e protocolar nota informativa, presente-se a dor do novo e jovem monarca ao dar a triste notícia a um chefe de Estado que vivia no outro lado do mundo, mas que tivera a oportunidade de conhecer pessoalmente em 1897, quando Chulalongkorn por Lisboa passou em digressão oficial. Os arquivos tailandeses estão, como verifico, carregados de testemunhos portugueses, aqui encontrado valiosos documentos que em Lisboa, na voragem de insensibilidade, criminosa incúria e facciosismo se perderam para sempre. Que vergonha ter de vir à Tailândia para encontrar documentação portuguesa, escrita em português e emitida pelo Estado Português.

(...) "As mortes do meu muito amado e prezado pai e do meu muito querido irmão, vítimas de abominável assassinato deixaram-me entregue, bem assim à totalidade da Nação Portuguesa, na mais profunda aflição. (...) O interesse que VM sempre mostrou por toda a minha família é consoladora esperança de que Vossa Majestade tomará uma viva parte na acerba mágoa que me causaram tão cruéis golpes. Chamado n'estas tristes circunstâncias, pela ordem da sucessão e na continuidade das leis do Reino de Portugal, ao trono de meus antepassados, rogo a Vossa Majestade haja dispensar-me os mesmos sentimentos de afecto que dedicava ao Augusto Monarca falecido e de ficar certo do vivo desejo que tenho de estreitar cada vez mais as relações de boa inteligência que felizmente subsistem entre os nossos países (...)".

Dois anos depois, a república era imposta a tiros de canhão e as relações luso-siamesas eclipsaram-se, passando a representação consular para mãos de italianos pelas décadas de 20 e 30, até à chegada de um português nas vésperas da Segunda Guerra Mundial. Portugal perdeu, então, a última oportunidade de manter no Sião o estatuto de potência aliada, a mais antiga e respeitada, que os siameses sempre lhe haviam tributado. O estado de coisas foi tão confrangedor que um dia, por volta de 1911, a polícia siamesa entrou pelo nosso consulado adentro para questionar os residentes a razão "daquela bandeira que ali puseram no jardim". Referiam-se, claro, à verde-rubra que ninguém conhecia e que Lisboa não tivera sequer a sensatez de anunciar aos países com os quais mantinha relações diplomáticas. Coisas do amadorismo de uma república que se vai celebrar !

sábado, 9 de janeiro de 2010

História desconhecida dos portugueses na Ásia: os portugueses que dominaram Hong Kong


Clerk's of Councils, ou seja, Secretários Gerais da Colónia, José Maria de Almada e Castro e seu irmão Leonardo de Almada e Castro ocuparam durante décadas a terceira posição na hierarquia administrativa de Hong Kong e foram decisivos para a moldagem institucional da mais importante colónia da coroa britânica no extremo-Oriente. Conselheiros de John Bowring, governador de Hong Kong e embaixador incumbido de negociar o primeiro "tratado desigual" com o Sião em 1859, mantiveram-se como influentes figuras e, depois, o clã Castro ocupou relevantes posições até vésperas da Segunda Guerra Mundial. Não se tratou de caso isolado. Já antes da ascensão dos Castro, outro português, Alexandre Grande-Pré, ocupara as funções de Secretário da Colónia nos conturbados anos 40, ou seja, imediatamente após a cedência de Hong Kong ao Reino Unido, no desfecho da Primeira Guerra do Ópio. Grande-Pré foi depois comandante geral da polícia.
Os britânicos, tal como acontecera em Penangue em finais do século XVIII e em Singapura no primeiro quartel do século XIX, tentaram compreender o funcionamento e aplicar o modelo português, tido por mais experiente e alicerçado num profundo conhecimento dos modos e práticas asiáticos.
Hong Kong fazia parte, em 1848, do "império-sombra" português na Ásia. Ali funcionavam três escolas católicas - uma para rapazes europeus, leccionando em português e inglês; outra para raparigas e outra para chineses - e o ensino aí praticado era considerado modelar, pois desenvolvido por "scholars" (1). Em finais do século XIX, entre 10.000 britânicos e estrangeiros vivendo na cidade, 1.263 eram portugueses; ou seja, 12% de elite da colónia, pois que a massa dos quase 200.000 chineses ocupava funções modestas e detinha acesso limitado à engrenagem do poder.
Não deixa de ser sintomático o facto de Portugal abrir o primeiro consulado em Hong Kong antes de quaisquer outras potências europeias presentes na Ásia e, também, o facto do Sião ter aberto consulado em Macau anos antes de nomear um representante em Hong Kong. No trabalho que realizo detecto outra curiosidade: a chegada ao Sião, nas décadas de 60, 70 e 80 de muitos portugueses de Macau, fez-se através de Hong Kong; ou seja, Hong Kong era utilizado como agente difusor da rede informal de poder que os portugueses possuíam há muito. Positivamente, os portugueses viviam dentro do aparelho britânico, dominavam-lhe as fragilidades e tiravam partido da força britânica para se candidatarem a concursos para lugares de conselheiros junto da corte siamesa.
A defesa de Hong Kong foi, também, desde os primeiros momentos da colonização britânica, entregue a portugueses. Ao criar-se o Corpo de Voluntários, em 1854 - sintomaticamente durante a governação de Bowring - com a incumbência de proteger a cidade e manter a ordem pública, o número de portugueses fardados e armados atingia 15% dos efectivos. Os Voluntários Portugueses mantiveram-se como força relevante do dispositivo militar da colónia até à invasão japonesa de Dezembro de 1941 e muitos pagaram com a vida a defesa da sua terra, caso muito similar ao dos luso-descendentes na Malaia Britânica (actual Malásia), que foram notados pela bravura que demonstraram ao longo dos anos de guerrilha anti-nipónica (1942-45). Igualmente em Xangai se constituiu um Corpo de Voluntários Portugueses, que executava tarefas de vigilância e manutenção da ordem dentro do perímetro da Concessão Internacional.
Para todos quantos cultivam o miserabilismo como princípio para a análise da presença recente portuguesa nesta paragens, estes curtos apontamentos surgem como uma provocação. O propósito não é, evidentemente, provocar, mas contrariar lugares-comuns e essa tremenda inibição que tem feito de nós e da nossa historiografia um caso perdido e digno de piedade no triunfalismo historiográfico que domina a visão anglo-saxónica. Há muito que fazer e investigar, mas este é, creio, o caminho certo.

(1) ENDACOTT, G.B. A history of Hong Kong. London: Oxford Press, 1964

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Anna Leonowens era portuguesa

De Susan Morgan, Bombay Anna é, indiscutivelmente, o desvelar de um mistério que a biografada e sua descendência quiseram sepultar. Bristowe, o maior conhecedor da vida de Leonowens já o dissera há muitos anos: essa Anna não era, não podia ter sido britânica de nascimento. Anna Leonowens, a famosa governanta do Rei do Sião que inspirou o clássico musical de Hollywood The King and I, com Deborah Kerr e Yul Brynner, era, afinal, uma pobre rapariguinha meia-casta nascida em Bombaim. O avô de Anna seria um desses deserdados de poucas letras nascido num qualquer deprimido pequeno mundo rural inglês de inícios da Revolução Industrial que Chegara à Índia sem eira e alistara-se como praça no exército da British East India Company. Ali conheceu na "Cidade Negra" (ou Cidade Nativa) uma rapariga Topass (1) - isto é, euro-asiática católica de ascendência portuguesa - com quem contraiu matrimónio. Desse casamento que teve desfecho na prematura morte do soldado, nasceu Mary Anne, mãe de Anna "Leonowens". Esta, casou aos treze anos com um sargento sapador, mas logo enviuvou. Desse casamento vieram ao mundo duas raparigas, tendo Anna [Harriett Edwards] nascido semanas após a morte do progenitor.

Leonowens construiu várias identidades ao longo da vida. Nas memórias que deixou, afirmou ter nascido em Gales no seio de uma família com cabedais e que o seu pai - "oficial do exército" - a mandara vir logo que concluída esmerada educação. Se Leonowens recebeu alguma educação foi nas escolas regimentais. Viva, curiosa e extremamente inteligente - falava fluentemente quatro línguas e chegou a ser reconhecida como autoridade em sanscritologia - era uma força da natureza. Compreende-se que, ao chegar a hora do triunfo e do reconhecimento - foi sucessivamente preceptora dos filhos de Rama IV do Sião, jornalista-viajante e conferencista, militante da causa abolicionista e no fim da vida uma líder sufragista - tentasse ocultar as suas raízes.

Casou Anna com um homem obscuro, oriundo da classe média irlandesa protestante dizimada pelas fomes de 1840. Este Leon Owens morreu prematuramente. Fora funcionáro público em Bombaim mas quis mudar de vida e candidatou-se a gerente de um modestíssimo hotel em Pinangue (Penang). Ao falecer naquela que era conhecida como a "tumba do homem branco", deixou mulher e dois filhos na maisextrema penúria. Eis uma revelação que Susan Morgan não desenvolve. Pinangue é uma ilha situada no estreito de Malaca. Pertencendo ao sultão de Kedah, foi comprada pela Honorable Company em 1786, passando a integrar as possessões dos Straits Settlements. Ali, o Capitão Francis Light, oficial da EIC lançou os caboucos de uma cidade (George Town). Pinangue era despovoada, pelo que Light trouxe da península malaia muitos "portugueses" de Kedah e Malaca. Casou com uma luso-descendente e Pinangue passou a ser mais um bandel católico das lusotopias asiáticas que floresceram nesta parte do mundo entre os séculos XVI e XIX. Parece que Anna quis apagar esse registo e essa ligação. Nascera em Bombaim no seio do enclave meia-casta católico, mudou-se para Pinangue, uma ilha de luso-descendentes antes de desembarcar em Singapura, a nova pérola da Coroa. Ora, Singapura era, também, uma cidade feita por portugueses. Quando Raffles aí se instalou e içou a Union Jack, convidou muitos luso-descendentes de Pukhet e Malaca, mas também de Pinangue. Parece que tudo bate certo, mas Anna não queria ser tida por católica, muito menos por euro-asiática.


Não se sabe exactamente como se insinuou junto do cônsul do Sião em Singapura, mas se o fez terá invocado o seu nascimento britânico, pois o lugar de professora de inglês dos filhos do Rei requeria uma dama, não uma pobre meia-casta. Compreendo, agora, as amargas, injustas e depreciativas palavras que Anna escreveu a respeito dos luso-siameses de Banguecoque. Queria varrer da memória as suas origens, não se queria com eles identificar. Era um medo profundo esse de poder ser descoberta por aqueles cujo contacto evitava; ou seja, aqueles que lhe lembravam a parte oculta da sua identidade e a sua origem mestiça.

Depois de alguns anos no Sião, mudou de ares e tornou-se uma celebridade dos salões e academias da América do Norte e Europa. Era já Madame Leonowens, rica, culta, influente, pelo que destruiu toda a documentação e inventou uma vida. Um seu sobrinho neto chegou aos píncaros da popularidade. William Henry Pratt passou à história com o nome artístico de Boris Karloff e ainda é, por antonomásia, o Drácula das fitas do cinema a preto e branco. Boris Karloff, sobrinho neto de uma pobre rapariga luso-indiana de Bombaim.
MORGAN, Susan. Bombay Anna: The Real Story and Remarkable Adventures of the King and I Governess. Los Angeles: University of California Press, 2008.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Portugueses com canhões de Waterloo fazendo guerra no Laos


Encontrei hoje relevante documentação tailandesa sobre a participação do Corpo de Artilheiros e Engenheiros Portugueses na cataclísmica guerra que os siameses moveram contra o Principado de Lan Chang (actual Laos) entre 1827 e 1828. Já tinha localizado algumas referências nas Lettres de Bangkok, do Padre Bruguière das Missions Étrangères, publicadas nos Annalles de l'Association de la Propagation de la Foi, mas documentos de arquivo do Palácio Real atestando a importância militar dos "soldados cristãos" permitem-nos dar um passo em frente na avaliação da importância que os luso-siameses tiveram nos exércitos siameses até ao terceiro quartel do século XIX. É outra página sobre a História Desconhecida dos portugueses na Ásia que se abre.
Ora, esses portugueses vivendo perto da Igreja da Conceição eram nada mais que o corpo de elite do exército. Não era, pois, nem gente sem preparação - para se ser artilheiro ou engenheiro militar é necessário saber-se matemática e balística - nem simples peões. Viviam separados da restante população, detinham foros e liberdades que os isentavam de trabalho braçal nas corveias reais e sabiam línguas (latim, português e inglês). Quando aqui vieram as primeiras missões diplomáticas britânicas, respectivamente nos reinados de Rama II e Rama III, a Grã-Bretanha dispôs-se modernizar os exércitos de Banguecoque mercê do fornecimento de armas ligeiras de fogo e, depois, peças de artilharia. O Sião foi, nas palavras do Phra Khlang (Ministro para os contactos externos) "inundado de armas pelos britânicos". Os siameses, contudo, delas não sabiam fazer uso adequado, pelo que os conselheiros britânicos investiram fortemente na formação tecnológica da minoria católica luso-siamesa. Com canhões que haviam servido Wellington em Waterloo, estes artilheiros aplicaram pela primeira vez no Sudeste Asiático a tecnologia de fogos concentrados, devastadores sobre exércitos que de tais armas não tinham, sequer, conhecimento. A guerra foi brutal. O Príncipe de Vientiane, Chao Anou, um homem de grande carisma, pensara poder unir os principados Laos e denunciar a vassalidade que o obrigava a enviar tributo anual a Banguecoque. Confiante, deixou de enviar o bunga mas aos siameses, sondou os britânicos para lhes solicitar protecção e iniciou a rebelião, invadindo território siamês, chegando às cercanias de Banguecoque. No momento derradeiro, o Corpo de Artilheiros Portugueses fulminou a investida. A retaliação siamesa foi brutal. Lan Chang foi riscada do mapa, a sua capital destruída até às fundações e a população, por inteiro, transferida para aquilo que é hoje o Issan, no leste da Tailândia.
Nessa primeira guerra moderna, coube aos portugueses a parte de leão. Integrados no Primeiro Exército Siamês no teatro de operações, forte de 85.000 homens e comandado pelo Segundo Rei, tinham por camaradas de armas outra minoria étnica cristã com sobejas provas de habilidade castrense: os japoneses católicos que haviam sobrevivido à tomada e saque de Ayuthia pelos birmaneses em 1767. Deixaram um rasto de destruição tal que, em 1880, os franceses ainda recolhiam memórias da "grande guerra" entre os anciãos laocianos. No fim, Chao Anou foi trazido cativo para Banguecoque, torturado e morto.
O importante disto reside no facto de não se tratar de acontecimentos do século XVI ou XVII. Trata-se de história contemporânea. Infelizmente, em Portugal, só se estuda a Ásia que os portugueses conheceram no tempo de Mendes Pinto e Camões. Uma pena, pois mal sabemos avaliar a importância que nestas paragens tivemos até há bem pouco tempo. A receita, então, é: investigar, investigar, investigar.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

História desconhecida dos portugueses na Ásia: o arquitecto misterioso

As fontes documentais escritas constituem, naturalmente, o suporte por excelência da investigação histórica. Contudo, por vezes, à conta de tanto as citarmos, acabamos por nos tornar escravos involuntários e bem intencionados de um erro. Muitas são as referências ao Consulado Português em Banguecoque, a mais antiga representação diplomática estrangeira na Tailândia, mas excassas são as descrições do edifício onde se instalou desde a década de 1820, quando o primeiro cônsul titular - Carlos Manuel da Silveira - dela fez residência. Há uma vaga descrição, datada dos anos 40 do século XIX, em Frederick Arthur Neale (Narrative of a residence at the capital of the Kingdom of Siam, with description of the manners, customs and laws (...), v. pp. 276 e 279), bem como nas memórias deixadas por missionários norte-americanos que ali perto viveram durante os primeiros anos da sua actividade de pregação bíblica. Nestas últimas, que privilegiam o aspecto humano, o acolhimento caloroso que lhes foi dispensado, as conversas de fim de tarde à sombra da frondosa figueira centenar que ali ainda existe, não há propriamente a descrição da casa, mas traços impressionistas da aguarela da memória. Há, finalmente, executada em Março de 1844 por Luís Pereira de Campos, uma planta topográfica da Feitoria Portuguesa no Sião.
Sabemos que o edifício sofreu grandes obras nas décadas de 1860 e 1870 e que as gravuras publicadas nas páginas da Revista Ocidente (1883 e 1897) apresentam-no com a traça hoje existente. Dizia Neale que o Consulado era uma construção em bambú e varas, coberto de estuque caiado, que o cônsul Marcelino da Rosa pretendera substituir o frágil edifício por outro em pedra e alvenaria, pedindo a Goa que lhe enviassem os materiais para a erecção de uma representação digna do nome de Portugal. Reza Neale que a embarcação naufragou e que se perderam os precisos materiais. Ora, olhando para a planta topográfica de Luís Pereira de Campos (1844), consultada a legenda descritiva, avultam algumas referências que contradizem a fragilidade cantada por Neale: um caminho calcetado em tijolo, que ligava o embarcadouro ao edifício principal, vasto de onze compartimentos e que havia um muro em alvenaria protegendo a feitoria. Talvez as palavras de menos apreço de Neale se referissem ao edifício da Feitoria e não à residência do cônsul, contígua mas separada. Na planta de 1844, o edifício consular apresenta os contornos da actual residência do Embaixador, provando que o mesmo já existia e que terá sido posteriormente objecto de trabalhos de melhoramento estético.

Tudo isto não passaria de um simples [e até delirante] exercício de possibilidades se , entretanto, não tivesse sido confrontado com a imagem de uma réplica exacta do actual edifício principal da nossa embaixada. A UNESCO promove anualmente desde 2000 um concurso internacional para atribuição do galardão Asia-Pacific Heritage, destinado a premiar iniciativas que visem promover e distinguir as melhores obras de preservação da herança cultural arquitectónica no espaço Ásia-Pacífico. Em 2008, a Suffolk House, casa do governador de Penang, recebeu o prémio. Foi erigida em 1805 e sofreu alterações de vulto entre 1810 e 1812, funcionando como centro administrativo - leia-se "feitoria" - e residência do representante da Companhia Britânica das Índias Orientais. Ao percorrer a exposição alusiva ao prémio, agora patente em Banguecoque, olhei para a gravura da Suffolk House e disse para comigo: "conheço este edifício de algum lado". Depois, socorrendo-me da memória visual da nossa Embaixada, acrescentei-lhe caixa em madeira e frontão dórico, retirei as colunatas da varanda do primeiro piso e enxertei na fachada largas janelas. Olhando para o piso térreo, nada tirei nem acrescentei: é, tal e qual a nossa Embaixada. Mas surgiu um pequeno problema. Na Suffolk House, projectada no primeiro piso, uma varanda parece desafiar a minha especulação. Depois, lembrei-me que na residência dos nossos embaixadores, a sala de visitas é projectada e possui todos os traços de uma outrora varanda, entretanto fechada e anexada ao espaço da casa.
Se o actual edifício da nossa Embaixada é, tal como o vemos, produto de trabalhos executados na década de 1860, por que razão mimetiza um outro edifício construído 60 anos antes ? O edifício dito "georgiano" britânico integra elementos formais de uma gramática arquitectónica que era, na década de 1860, obsoleta. Que motivo levaria os portugueses a copiar um edificio com funcionalidades tidas por ultrapassadas ? O piso térreo de ambos os edifícios integra aquilo que comunmente se designa "estilo sino-português", uma adaptação do muito glosado "estilo chão português" do século XVII, exportado para os trópicos e muito praticado no Brasil colonial e em Macau dos séculos XVIII e XIX. O "estilo georgiano" exportado pelos britânicos para o Oriente não oferece qualquer similitude com a casa apalaçada de Penang. Concluo que os dois edifícios foram construídos por um engenheiro muito impregnado pelas soluções portuguesas e que, quiçá, foram riscados pela mesma mão, um em 1805-1812, o outro no início da década de 1820. O edifício de Penang ficou tal como fora projectado; o edifício português de Banguecoque sofreu alterações de monta na segunda metade do século XIX. Pinang foi povoada por muitos católicos luso-descendetes oriundos de Malaca, Quedá (Kedha) e Sião e teve importante paróquia dirigida por padres portugueses. Ora, os padres eram, como o sabemos, arquitectos improvisados. Não será a Suffolk House um edifício concebido por um português ? E não será o edificio da nossa embaixada o verdadeiro e primitivo edifício, subsequentemente alterado ? Aqui fica o desafio para os entendidos.

sábado, 2 de janeiro de 2010

O país onde os professores são venerados


São mal pagos mas venerados. Perante eles, os alunos ajoelham-se ou sentam-se a seus pés com as mãos juntas, como só o fazemos perante os altares. São os Gurús, do sânscristo Ku-rú, que os thais fixaram e modernizaram como Krú. Os professores primários e do liceu são chamados Krú, mas aos docentes universitários é reservado o tratamento de Adjaân, ou seja, guias, mestres e reveladores do conhecimento. Numa sociedade que se inspira no modelo bramânico, o krú é o eco tardio do sacerdote bramânico, casta despojada de riqueza material, acima das preocupações que movem artífices, comerciantes, soldados e administradores. Perante eles, os tailandeses assumem uma atitude reverente, não falam, ouvem e acenam afirmativamente com pequenos movimentos de cabeça. Aqui não se bate nos professores, não se insulta um professor nem há comissões de pais iracundos fazendo esperas, proferindo ameaças e justificando o fracasso dos rebentos na culpabilização de um professor. Este é, sem tirar, o paraíso daqueles que ao ensino consagraram as vidas, escolhendo nessa ocupação a pobeza voluntária compensada pelo tributo de respeito e agradecimento dos jovens aos quais consagram as vidas.
O Krú é a antítese do "colarinho branco", do "executivo" e do obcecado pelo dinheiro. No funcionalismo do Estado, o Krú tem direito a um uniforme de cor creme, a divisas, galões e medalhas, que orgulhosamente ostenta. Um professor primário é um alferes ou tenente, um professor de liceu um capitão, um assistente universitário um major, um doutor um coronel. Das mais remotas aldeias e vilas da Tailândia rural às grandes universidades da capital, envergam a farda do seu métier e é habitual vê-los, orgulhosos, passear pelas ruas ou pelos mercados entre a massa da população que, ao identificá-los, sorri agradecida.
Está em exibição nos cinemas um filme que é a exaltação do professor. Tem por título Krú Bâan Nok - o Professor da Aldeia dos Pássaros - e conta a saga de um jovem professor primário chegado aos confins da Tailândia nos anos 60. Ali chegou para ensinar a ler, escrever e contar, mas também para estimular a iniciativa colectiva, demonstrar os benefícios do saneamento básico, da limpeza e asseio dos corpos e das ruas, do exercício físico, do patriotismo e da cidadania. É um hino à heroicidade do funcionário do Estado que não busca recompensa pecuniária, que se defronta com a reserva dos poderosos e acaba por se tornar no líder da Aldeia dos Pássaros. Comovente, arrebatador, merecedor de cópia entre os portugueses.
Há dias encontrei uma velha professora universitária nos arquivos nacionais. Eu estava na companhia de um americano que ali também faz investigação. A senhora, nos seus setenta anos, perguntou-me o que ali fazia. Naturalmente, estando ela sentada, não fiquei de pé nem me sentei na cadeira vazia que ela me indicara. Vergei as pernas e coloquei-me, como o fazem os thais, num nível inferior à cabeça da professora. O americano, esse ficou de pé, com as manápulas nos bolsos e a mascar pastilha-elástica. No fim, perguntou-me: "que raio de posição a tua, até parece que lhe deves alguma coisa". A típica atitude do ocidental, que olha para os professores como pessoas que não possuem predicados para fazer dinheiro; logo refugiam-so no ensino. São dois mundos. Por mim, estou cada vez mais deste lado da civilização.

sábado, 26 de dezembro de 2009

Campos de papel

Para quem já fez trabalho de investigação em História sabe do entusiasmo, das viagens e aventuras solitárias que se podem fazer dentro de casa, no silêncio do estudo. Contudo, a redacção de qualquer livrinho, por mais insignificante, envolve milhares de horas, resmas de fotocópias, centos de fichas anotadas, retocadas, corrigidas ou rasuradas de cima a baixo. Depois, há os livros comprados ou requisitados em bibliotecas, as obras de referência lidas e comentadas em glosas laterais, mais as fotos tiradas nos arquivos, os documentos em microfilme, as transcrições parciais de processos, os relatórios; um mar de papel que vai tomando conta de tudo, trepando pelas paredes, ocupando mesas, engrossando pastas. A aldeia de papel acaba por nos ocupar a casa.

Deitei-me às seis da manhã, já o sol brilhava. Foram dezoito horas de arrumação, concatenação de séries documentais, indexação e ordenamento cronológico das duas mil páginas de notas realizadas ao longo de dois anos. Foram duzentos e trinta e quatro livros, trezentos e setenta e dois documentos de arquivo, oitenta imagens e quarenta mapas. O tema que aqui me trouxe - as relações entre o Sião e Portugal (1782-1939) - queimou-me a vista. Dizia-se à boca cheia que tudo estava esgotado, que a documentação sobre o assunto fora há muito localizada. Ora, em Ciências Humanas, como em qualquer outra, não há temas esgotados. Encontrei nestes últimos meses vinte vezes mais documentação que aquela a que me habituara nos tais textos obrigatórios. Em Lisboa, em Banguecoque, em Macau e Phnom Penh, milhares de páginas aguardavam quem as lesse, as interpretasse e voltasse a dar vida.
Sei que para muitos tudo isto é coisa pequena, pois a opinião é inimiga figadal do estudo, o improviso irreconciliável adversário do método. O trabalho científico parte de suposições e corrige-se empiricamente no processo de acareação de fontes. Agora que se aproxima o início da redacção do tal livrinho que prometo para 2011, um imprevisto: descobri mais umas centenas de documentos de arquivo onde menos eseprava: na arrecadação de uma Secretaria de Estado. Retomar o trabalho, rever as incongruências, comparar notas feitas. Os campos de papel a que me submeti pedem mais trabalho !

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Portuguese in Cambodia


Among with other documentation that I was able to locate in the National Archives of Cambodia, I found the complete files of employees of the Crown and servants of the French Resident Superieur. Records with marginal notes, correspondence, requests of information, promotions and punishments, rewards and penalties express the installation of the modern bureaucracy and the transition of an Asian patrimonial State to Modern Western State. Among dozens of files identified, stood out the the mixed Portuguese-Khmer who lived in the country since the Sixteenth century, there remained influential until the arrival of Pol Pot to power. There are generations of Monteiro's, Canto's and Albergaria's occupying positions of importance in the palatine administration and provincial offices, some clerks (translators and secretaries) others military officers, diplomats and even ministers. They were well-connected men, as evidenced by the letters of reference, with direct access to the King and the French resident, but also to the high-ranking Catholic representatives and, even, solid friendships in Macau, Singapore and France. It was a minority that nothing else could do than working for the Administration. As you read more carefully the report of Sir John Bowring - British governor of Hong Kong and plenipotentiary minister to negotiate a treaty with Siam (1855) - published in 1857 (The Kingdom and People of Siam), I found references to "Protuguet" working in the Court, like their Portuguese-Khmer brothers. Among them, Pascoal Ribeiro de Albergaria, quoted by all the diplomatic missions since the 1820s. He was a general of artillery, had a long and prosperous career, and everything indicates he was also master of court ceremonies. His body was buried in a Catholic cemetery in Bangkok located in Ban called Khmer (Khmer village). I asked one of his descendants, now senior officer working for Thai Foreign Office if he knew something about of his illustrious ancestor, but he gave me no satisfactory answer. By late afternoon yesterday, when I got home, I had a strange intuition, of those who violate the laws of rationality. If Albergaria's tomb is near Ban Khmer - might have something to do with the Khmer Portuguese came to Bangkok in one of the three waves of fleeing Cambodians arrived here between the late Eighteenth and early Nineteenth century. However, by chance, in the writings of a British diplomat who came to Bangkok in the 1820s, I found the link: Albergaria was descendant from Cambodians and his family established in Oudong - and then Phnom Penh - since end of 17th Century. He was grandson of a Portuguese man and a Anglo-Malaysian "half caste" lady named Lister, converted by marriage to the Catholic faith. The British envoys, always schown hight respect for him. Was said to be a handsome, highly intelligent and communicative person, much appreciated by the Siamese king and high ranked siamese officials under Rama III and Rama IV reigns. Pascoal was able to speak Siamese, Khmer, English, Portuguese and Latin languages, qualifications that provided him with an indispensable place in contacts with traders and diplomats who visited the kingdom. Next time when I visit his descendants, will bring them the good news. Now, in addition to Siamese and Portuguese ancestors, they will know that are also partially English and Khmer. The Albergarias were not the kind of adventurous "Portuguese in the wild" nor "people of bandel" those semi-literate and rude but fascinating men who settled a bit everywhere from India to Timor. These were literate and, by family name, belong to a small Portuguese nobility that left Europe in search of a new life.

domingo, 20 de dezembro de 2009

The enigmatic flag of Mindon


I had seen the flag played in old British prints of the Nineteenth Century, but I confess do not have aroused curiosity, thinking to lag behind the creative freedom of illustrators. Some days ago I have found it in a book of memories of the last British military campaign in northern Burma (1885) : a picuture of banners captured in the days before the fall of Mandalay, the last home of the Konbaung dynasty. There is it, the enigmatic flag, on the floor with other trophies: a black cross on a red field.

That was certainly not the flag of the kings of the dynasty, but a military standard. Could have only to do with the existence of Christians in the ranks of Mindon's and Thibaw's armies. Today, while browsing the best website dedicated to vexicology, found it with the following footnote: "The flag shown here is the banner of the royal gunners, who were mainly Christian Portuguese descendants." Then simply compare it with the flag of the Franciscan Order and there was no confusion: the same symbol. As the Franciscans were the first Portuguese to settle in Burma (1600), that flag was, (could only be) wielded by Portuguese Catholics. The portuguese-burmese gunners and sappers had long and respected career under Taungoo and Konbaung dynasties and fought against the Siamese, the Malay, the French and the Dutch, to be ravaged by the British armies. In the final days of Mandalay, they were the last defense against the military expedition led by General Prendergast. A puzzle ist to be doing, piece by piece. It is fascinating to watch the progressive definition of the name of Portugal emerging from the puzzle of research. Everything has to do with everything. There is no Siamese record, an ornament, a picture or a simple iconographic detail from Cambodian, Burmese or Malay ducuments which are not related to the presence of Portugal in Southeast Asia. Portugal was still in the Nineteenth century knocking on the door of the Twentieth century, the great reference in this vast region between India and the Middle Kingdom.

domingo, 22 de novembro de 2009

Incêndio na Siam Society

Ontem estive todo o dia deprimido. Pela televisão recebi a tremenda notícia: o edifício da Siam Society fora tragado por um incêndio devastador. Ao longo dos últimos dois anos, a Siam Society foi uma segunda casa. Ali passei milhares de horas naquela que é uma das melhores bibliotecas especializadas em bibliografia e documentação sobre o Sudeste-Asiático e recebi sempre dos funcionários e dirigentes um caloroso acolhimento e apoio. Para minha casa trazia todas as semanas uma ou duas obras requisitadas, livros raros, comprados um pouco por todo o mundo - em espanhol, francês, inglês, italiano, alemão e até português - por esse grupo de animadores e entusiastas do património histórico e cultural siamês que tem mantido a Siam Society desde 1905. A história cultural contemporânea do país cruza-se com a instituição. Ali passaram ao longo de um século os mais autorizados investigadores estrangeiros, ali se reuniram, realizaram palestras e escreveram obra os mais influentes homens de cultura da Tailândia. De repente, num ápice, um fogo propagou-se e ameaçou de morte tanto labor e dedicação.
Recomposto, liguei a uma das dirigentes e ofereci os meus modestos préstimos. Como sou bibliotecário, talvez precisassem do meu contributo. Disseram-me que por lá passasse hoje após o almoço. Fui encontrar o belo edifício ainda fumegante, telhados contorcidos, paredes desfeitas e o jardim transformado num lodaçal pelas mangueiras dos bombeiros. Perante o desastre, revelou-se-me, uma vez mais, a nobreza dos thais. Os funcionários da Siam Society transformaram um alpendre em escritório e ali estavam registando telefonemas, recebendo obras requisitadas, informando os sócios e listando donativos. Esta gente tem um grande coração e uma enorme capacidade para fazer frente a desafios como este. Julgo que é em momentos de adversidade que as pessoas se revelam. Não vi pieguices nem lágrimas. Rostos compenetrados e sérios, palavras mansas mas decididas, projectos por realizar, ideias para o futuro, foi tudo quanto vi e ouvi nesta visita fúnebre aos despojos da Siam Society. Perdeu-se a livraria, os escritórios e toda a documentação ardeu, mais computadores, impressoras, mobiliário, bases de dados, a revista que aguardava lançamento, pinturas e esculturas.
Felizmente, a grande biblioteca, mais a mapoteca, os manuscritos e a hemeroteca sofreram danos leves. O fogo, irracional e caprichoso, escolheu coisas menores. Um frio de regelar, húmido e pestífero das cinzas flutuantes, invade a biblioteca. Sobre milhares de obras caiu um pó negro como um crepe sobre um cadáver. Aquilo que demorou cem anos a fazer quase morreu em vinte minutos. Lembro os dias felizes que ali passei, no conforto da bela sala de leitura, lembro a brilhante conferência que o Professor Vasconcelos de Saldanha ali proferiu em Março passado, o calor dos aplausos e o entusiasmo por ali ressoar o nome da velha aliança que une desde 1511 Portugal ao Sião.
Portugal poderia, na medida das suas possibilidades, oferecer-se para engrossar o número de países e instituições que já exibiram consternação pelo trágico evento. Por mim, estou disposto a trabalhar graciosamente em qualquer projecto.