sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Antípodas semióticos: no país que ama a suástica

Para desacreditar de vez qualquer "gramática universal" e para demonstrar a ilusão da pseudomorfose civilizacional - uma civilização mundial única partilhando os mesmos símbolos - aqui deixo quatro saudáveis provocações aos meus leitores. Fui ontem à estreia do tão aguardado como polémico filme de Tom Cruise sobre o atendado falhado contra Hitler em 20 de Julho de 1944, protagonizado pelo coronel conde Claus von Stauffenberg. À entrada do grande complexo de salas de cinema, um hall que faria inveja ao estilo "Kolossal" de Speer, bandeiras nacional-socialistas emprestavam à atmosfera patética marca de anacronismo. Não era uma, nem duas, nem três, mas um mar de bandeiras, faixas e flâmulas que na Europa cairiam de imediato sob alçada das leis que impedem a divulgação e exposição pública de tal símbolo. Terminada a fita, que estimo regular e contrastante com o escândalo que acompanhou as filmagens, muitos assistentes, ao passarem pelas bandeiras faziam a vénia com que os tailandeses exibem respeito por pessoas ou símbolos estimados superiores, elevando as mãos juntas à testa.

Semanas antes, nos quiosques e livrarias de Banguecoque, uma revista tailandesa especializada em comunicação e publicidade exibia à largura da capa uma versão pop da suástica e desenvolvia extenso historial de um símbolo muito próximo da religiosidade oriental, esclarecendo que a "cruz gamada" era património do budismo, que por sua vez o tinha recebido da Índia védica.


O amigo Nuno Caldeira, aqui residente, fez-me chegar a foto de um automóvel literalmente coberto de suásticas, afirmando com acerto que tal símbolo político diz muito pouco aos tailandeses. A suástica é aqui muito respeitada, encontrando-se por todo o lado em templos e mosteiros, pendendo à entrada das casas como talismã protector ou usada como amuleto que as pessoas levam ao peito. Encontro-a, também, em automóveis, motorizadas e, até, como elemento decorativo da louça servida em restaurantes. Quando vou à piscina, deparo amiúde com pessoas que se fizeram tatuar com suásticas no peito ou nas costas, pois persiste a crença que tal as protege de acidentes ou doenças. Hitler não inventou nada. No tempo em que a Europa se abria com curiosidade às chamadas filosofias orientais e numa Alemanha regorgitante de interesse pelas teosofias e ocultismos para todos os gostos, a suástica foi usada como misterioso elemento mágico de identificação para os anti-cristãos, décadas antes de se converter em bandeira de uma ideologia racista. Fez parte, durante dois milénios, do património do arco civilizacional indo-europeu e entranhou-se no budismo - nascido na Índia - chegando a converter-se em símbolo do imperador Assok, o maior dos soberanos da dinastia Maurya.

Lembro-me agora que na última vez que estive em Hong Kong deparei com uma manifestação da seita Falun Gong, que protestava contra as perseguições de que tem sido alvo pelas autoridades de Pequim. Ora, a bandeira da organização é uma suástica cercada por quatro ying e yang (as polaridades do equilíbrio), inscritos sobre um círculo açafrão. O laranja, que entre nós só se vende com a Fanta ou com o PSD, é a cor da pureza monacal com que os religiosos se cobrem. Como são diferentes as culturas, como é rica a diversidade humana. Por favor, quando vierem à Tailândia, não façam qualquer reparo à suástica. Se o fizerem, terão uma multidão em fúria defendendo um dos seus mais estimados e reverenciados símbolos.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Os nossos portugueses da Birmânia


Em 2002, o jornalista e fotógrafo Joaquim Magalhães de Castro percorreu a Birmânia (Myanmar) em busca dos vestígios da minoria portuguesa- católica bayingyi, que ainda sobrevive no vale do rio Mu, afluente do Irrawady. O resultado deste notável trabalho de campo foi, a todos os títulos, inesperado. A sensibilidade do artista captou com intensidade os rostos dessa gente que orgulhosamente ainda exibe os traços do sangue e herança portugueses. Quatrocentos anos de obstinada resistência, apego à memória, práticas gastronómicas, indumentária, farrapos de língua e uma profunda demarcação religiosa transformaram em relíquia antropológica a comunidade remanescente do trânsito de aventureiros, comerciantes e missionários vindos da Roma do Oriente (Goa) a caminho de Malaca e Macau.


Alguns, menos avisados ou mal intencionados, neles quiseram ver os descendentes de casamentos mistos entre franceses e birmameses. Os franceses de Pondicherry, contudo, facultaram apoio aos Mon na luta contra os birmaneses. Esmagados pelo Rei Alaungpaya da Birmânia em 1756, franceses e Mon foram incorporados à força nos exércitos vencedores. Magnânimo no triunfo, Alaungpaya concedeu-lhes o privilégio de servirem novo senhor, posto que qualquer recusa teria como único pagamento serem assados vivos, como aconteceu com Sieur de Bruno, o comandante galo. Um dos militares que por lá ficou no rescaldo dessa inglória aventura gaulesa foi Pierre de Milard, que chegaria a comandante da guarda real birmanesa. A historiografia francesa, sempre atrevida, afirmou sem vacilações que os bayingyi seriam, pois, fruto da miscigenação entre mercenários franceses e mulheres birmanesas. Não é credível tal estória, porquanto, noutras paragens - vide Camboja, vide Sião/Tailândia - tal cruzamento só se verificou após longa permanência de europeus na região. Os franceses terão por lá ficado menos de dez anos e mesmo supondo que todos tivessem casado e deixado descendência, é pouco crível que as marcas ocidentais fossem de inspiração francesa e não portuguesa. Estas comunidades católicas reclamaram sempre ancestralidade lusa. Assim, vejamos:

Em An account of an embassy to the kingdom of Ava sent by the governor general of India in the year of 1795, Michael Symes referia-se à audiência que em 1760 o Rei birmanês dera à delegação britânica vinda para negociar a libertação de cativos ingleses. A delegação era encabeçada pelo Capitão Alves, um luso-indiano de Calcutá e tinha por tradutor um tal António, o Português. "Foi honrado com uma audiência em 23 de Agosto de 1760, destinada à entrega das credenciais. As cartas dos governadores [britânicos] de Madras e Bengala seguiam nas versões em persa, português e birmanês (...)."
Depois, já instalada em Rangoon, a delegação foi apresentada a um tal Jaunsee (José), "descendente de uma família portuguesa cuja origem era muito baixa e que na juventude fora acusado pelo assalto a um veleiro inglês. Este José ocupava as funções de shawbander, ou intendente do porto e responsável pela alfândega". Dias volvidos, Symes observa que a guarda do vice-Rei, composta por 600 guerreiros armados de lanças e espadas, era comandanda por "oficiais que eram (...) maioritariamente cristãos descendentes de portugueses". Dos "franceses", nem palavra !
Na digressão que a embaixada fez de Rangoo a Pegú, visitaram um aldeamento cristão tendo como pastor um padre italiano. "A congregação consiste em descendentes de antigos colonos portugueses, os quais, embora numerosos, são em geral muito pobres". Dos "franceses", nem palavra !
De novo na capital, uma cidade cosmopolita especializada no comércio a longa distância, verificam novamente a existência de um bairro português: "na mesma rua pode-se ouvir a solene voz dos muezin chamando os pios islamitas e o tanger do sino da capela portuguesa chamando os cristãos romanos".
Durante o reinado de Bagyidaw (r. 1819-1837), o responsável pelas relações externas da Birmânia era, também, um português. Na sua History of Burma from the earliest times to 10 March 1824, the beginning of the english conquest, Harvey refere-se-lhe nestes modos: "o conselheiro chefe nos negócios estrangeiros era um meia-casta português que hoje não seria aceite por uma paróquia, mas que era olhado como um autoridade pelo facto de ter viajado tão longe como Calcutá". Naturalmente, a cegueira do preconceito e o germe do racismozinho britânico em plena incubação não lhe permitia ver no luso-birmanês mais que uma criatura degenerada pela mistura do sangue. Tal como no Camboja e Sião, estes birmaneses católicos estavam avisados das blandícias e armadilhas dos europeus e defendiam com todo o engenho os seus reais senhores das mentiras de tais "diplomatas". Há alusões aos franceses ? Nenhuma.
Hoje, os noticiários estão fixados nos rohinya, novo ariete "questão de sapatos" para agredir as autoridades tailandesas, acusadas de os escorraçarem para mar alto. Pedia-se, ao menos, que a comunicação social portuguesa explicasse ao público português que a Birmânia é um manto multi-étnico e religioso, que os rohinya são uma insignificante comunidade, que por lá também há Karen's, Shan's, indianos, Mon's, chineses, Naga's, Lahu's, Lisu's e ... Portugueses ! Mas não, quando a falta de informação se arma de espada em riste para lançar moda, nada há que a demova. Quererá o nosso governo informar-se sobre a sorte dos portugueses da Birmânia ? Sempre ao dispor para qualquer ajuda.