sábado, 8 de janeiro de 2011

Clara, a primeira siamesa diplomata


Chamava-se Clara Xavier, ou antes, menina de Phipat Kosa, filha de Celestino Maria Xavier, aliás Phraya Phipat Kosa, secretário de Estado sob Rama V, fundador e administrador da empresa que instalou os eléctricos em Banguecoque no início do século XX e, depois, embaixador do Sião em Roma e representante do reino do Elefante Branco na Sociedade das Nações. Clara partiu de Banguecoque para Londres, onde cursou enfermagem no South London Hospital for Women. Ao receber o diploma, foi requisitada pelo seu pai e foi secretária da legação siamesa em Genebra. Tantos feitos numa só rapariga vinda do outro canto do planeta. Siamesa católica, falando fluentemente português, esta nossa Clara foi modelo para o tímido movimento que no Sião reclamava a igualdade jurídica entre homens e mulheres. Há tanto por contar a respeito dos portugueses !

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Novíssimas do Sião: a siamesa da Évora quinhentista

Graças a uma conversa absolutamente fortuita com um amigo investigador, estamos a milímetros de destruir um lugar-comum que se trombeteava pelas holandas desde há séculos. Em 1608, um galeão holandês comandado por Corneluis Matelief trouxe à Europa uma embaixada siamesa enviada pelo rei Ekathotsarot. Recebidos por Maurício de Nassau, os diplomatas permaneceram na Haia rodeados por viva curiosidade. Muito se tem escrito sobre esses "primeiros siameses na Europa de Seiscentos" e há dois anos, em Banguecoque, foram esses fastos lembrados em exposições e conferências por altura das celebrações milionárias dos quatro séculos de relações entre a Tailândia e a Holanda.

Um pequeno senão. Os holandeses receberam siameses, sim senhor, mas quase trinta anos depois de uma rapariga thai ter saído dos porões de uma das naus da carreira da Índia para aqui passar o resto das sua vida como escrava "Índia de nação sioa" ao serviço de uma casa nobre. Foi baptizada, recebeu nome cristão e viveu em Évora. Mais uma pequena pedra para o sempre incompleto como fascinante edifício da história das relações entre os dois países.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Azeitão do Sudeste Asiático


Os thais chamam à sua capital Krung Thep Mahanakhon (กรุงเทพมหานคร), pelo que se o caro leitor se referir a Bangkok (Banguecoque em português) em frente de um tailandês comum, este não compreenderá de que lugar se está a falar. Isto tem uma explicação. Bangkok foi criada por portugueses em meados do século XVII e, traduzido para português, quer dizer tão só Azeitão ou "aldeia das azeitoneiras" (Ban = aldeia + Kók/กอก = oliveira). Originárias da América do Sul, as azeitoneiras Spondias mombin (cajá-manga para os brasileiros) foram introduzidas no Sudeste-Asiático pelos portugueses em inícios do século XVII e usadas como base para molhos e conservas, ou seja, com a mesma finalidade do azeite de oliveira na Europa da Antiguidade e Idade Média. A aldeia de Bangkok nasceu no actual distrito de Samsen, três quilómetros a norte do complexo religioso-administrativo do palácio real, que só seria erigido a partir de 1782. Ali havia uma igreja em madeira que servia o Padroado e era em Bangkok que as embarcações que subiam o Chao Phrya (rio de Bangkok) em direcção à antiga capital (Ayutthaya) interrompiam a sua viagem para receberem pilotos experimentados na navegação fluvial. Estes pilotos eram luso-siameses católicos, os únicos siameses que falavam a língua franca comercial e diplomática da região entre os séculos XVI e XIX, a língua portuguesa.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

1767: a revolta dos portugueses escravizados


Nos últimos dias de Ayutthaya assistiu-se à dissolução por inteiro do corpo de uma sociedade. A capital de 300.000 habitantes entrou em colapso, incêndios que ninguém combateu comeram até às fundações templos, palácios e armazéns, houve saque generalizado das reservas de víveres , brutais matanças às mãos dos invasores birmaneses e muita gente fugindo em grupos para os bosques infestados de animais selvagens ou percorrendo os caminhos dominados por bandos de ladrões. O rei siamês foi abandonado pelo séquito nas imediações da sua capital e morreu de doença e desidratação. O exército desintegrou-se. Ao ocuparem as últimas bolsas de resistência, os birmaneses deram aos sobreviventes duas semanas para que se preparassem para evacuar a região e rumassem em direcção ao cativeiro na Birmânia. Os sobreviventes da missão francesa, dirigidos pelo bispo Mgr. Brigot, concentraram-se no campo português, já então completamente calcinado pelos birmaneses. Aos católicos juntaram-se outras comunidades - Mon, Peguanos, Vietnamitas católicos e Japoneses - tendo-lhes sido transmitida análoga ordem de evacuação. Os católicos luso-siameses fizeram saber aos birmaneses que recusavam submeter-se à autoridade do bispo francês e que tinham como líderes espirituais os padres portugueses Isidoro da Conceição e Bernardino Salema.
Os padres franceses juraram ali fidelidade aos novos senhores e aceitaram a ordem de evacuação e cativeiro. Esperava-os, porém, uma marcha da morte de oitocentos quilómetros por montanhas e alcantilados densamente arborizados. As colunas de prisioneiros foram avançando penosamente em direcção a Oeste, atormentados pela fome, pela sede e sempre agredidos pelos seus carcereiros. A via sacra durou seis meses e nela padeceram milhares. Ao chegarem a Tavoy, na costa do Mar de Andaman, tamanha era a fome que ocorreram casos de canibalismo. A coluna de Brigot só sobreviveu graças à ajuda caridosa recebida das missões católicas portuguesas em Tenasserim. Os adversários reconciliavam-se na hora da dor. Ao invés de aceitarem o infortúnio, partilhando-o com o seu rebanho, os padres franceses conseguiram transporte para Pondicherry - colónia francesa no sudeste indiano - e abandonaram à sua sorte aqueles que neles haviam confiado; em suma, uma excelente lição de abnegação e dedicação missionárias.
A coluna portuguesa iniciou marcha em direcção à Birmânia em Maio de 1767. A comunidade mantivera-se unida e mantinha a liderança, pelo que ao longo do trajecto foram discutindo a melhor forma de se furtarem à vigilância do batalhão birmanês que os acompanhava. Após três semanas, numa noite escura, os portugueses manietaram os guardas, mataram-nos e puseram-se em fuga. Ao ser informado desta rebelião, o comandante birmanês da região foi acometido de grande ira e deu ordens às tropas para que massacrassem todos os portugueses internados nas matas. Dois generais birmaneses, com numerosos efectivos, foram lançados no encalço dos fugitivos. Para os portugueses foram nove longos meses de marchas nocturnas e pausas diurnas. O inimigo rondava e o silêncio e a imobilidade constituiam a melhor máscara. Ao cair do sol, retomavam o caminho em direcção a leste. A morte foi reclamando vidas. Dos mil saídos de Ayutthaya, só sobreviveriam 300 quando, em Abril de 1768, andrajosos e famintos, chegaram à actual Banguecoque.

No Sião, um novo homem forte revelara-se. O general Sin, mestiço sino-thai, organizara a resistência ao ocupante e instalara o seu quartel-general em Thonburi, hoje cidade satélite de Banguecoque situada na margem oposta do rio. Os portugueses de Ayutthaya instalaram-se provisoriamente em torno de uma igreja em Sam Sén pertencente ao Padroado. Este templo alberga hoje uma das mais sólidas comunidades luso-descendentes e dá pelo nome de Igreja da Conceição. Thaksin (Sin) foi informado da chegada desses portugueses e deu ordens expressas para que se apresentassem em Thonburi. Deu-lhes terra (Campo de Santa Cruz) e materiais para que ali erigissem uma igreja. Os membros da comunidade depressa se destacaram pelo destemor nas batalhas, pelo que o rei Taksin entre eles escolheu os setenta e oito mais bravos e deles fez a sua guarda pessoal. A guerra que faziam sem pausa nas hostes do rei não era, porém, reconhecida pelos padres franceses que, de novo, haviam aparecido para reclamar os direitos sobre a Missão do Sião. As mais agrestes, injustas e infames páginas foram então escritas e enviadas para França pelo padre Corre e companheiros. A estas intempestivas considerações, a comunidade virou-lhes as costas. Imaginemos, pois, a fúria de tão bons pastores quando, em Maio de 1770, o Rei siamês em pessoa visitou o campo cristão e fez aos franceses os mais rasgados elogios aos "meus portugueses". Disse: "estes homens nada sabem de saques, são fiéis e bravos e têm a protegê-los a mais antiga religião do mundo" (Carta de M. Corre aos directores do Seminário das Missions Étrangères. AME, vol 886, p. 445).

Depois, foram doze anos de campanhas militares no norte, no sul e leste. O Sião ia despertando e reapossando-se das regiões que se haviam furtado à sua autoridade após o colapso de Ayutthaya. Nessas batalhas sem fim, a comunidade luso-siamesa esteve sempre na dianteira e pagou pesado tributo à morte. Na correspondência dos missionários franceses evidencia-se este estado permanente de mobilização. Numa das cartas, o padre francês afirma que "em Thonburi só há mulheres e crianças, pois os homens [cristãos] estão permanentemente fora, entregues a missões de guerra longe de casa".
Esses Rebelos, Cruz, Martins, Soares, Silvas, Baptistas e Fernandes morreram um pouco por todo o Sião. Ao regressarem, os sobreviventes encontraram as suas famílias entregues a pobreza extrema mas, como lembra o insuspeito padre francês, sempre com o mesmo incorrigível orgulho português. "Uma jovem rapariga foi pedida em casamento por um rico mandarim (funcionário do Rei). Ao receber o convite, respondeu-lhe generosamente que a posição de cristã era superior à sua [do mandarim] e que ela não sacrificaria a sua qualidade a todas as riquezas do mundo e que mais facilmente se casaria com um pobre cristão que com um rei gentio". Dizimada e reduzida a 1/5 do seu efectivo inicial, esgotada pelas provações e isolada do mundo exterior, a comunidade não desertou, recusou-se servir o inimigo e manteve-se leal ao poder siamês. Carregando prestígio de cicatrizes e louros de vitória, seria ao longo dos próximos oitenta anos um dos mais vigorosos pilares do Sião pré-moderno. Pena que esta e outras histórias não tenham acolhimento nos manuais escolares portugueses.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Ayutthaya, 1767: aqui lutou-se até ao último grão de pólvora


Maquete de Ayutthaya fora-de portas no século XVII. À direita, o bandel dos portugueses.

A convite da leitora de Português em Banguecoque, passei hoje o dia em Ayutthaya, antiga capital do Sião onde, até 1767, residiu forte comunidade católica luso-siamesa. A visita de estudo inscreve-se nas actividades culturais da nossa embaixada e foi largamente correspondida por uma quarentena de amigos de Portugal, luso-descendentes, alunos de língua portuguesa e até funcionários da nossa embaixada. Tudo está a ser feito para, em crescendo de actividades, se celebrar aqui em 2011 o meio milénio de relações entre a Tailândia e Portugal. Pediram-me - a Luísa Dutra e a Pralom Bunrasamee, tradutora de português e também professora - que apresentasse sumariamente aos participantes o bandel português e fizesse o historial daquele que foi, até à sua completa destruição, um dos mais fortes núcleos de população católica em terras da Ásia até finais do século XVIII.

Ao invés de uma aula de história, preferi, como é meu timbre, fazer um exercício de "patriotismo científico" e contar-lhes, sem lenda nem ficção, os derradeiros dias dessa orgulhosa gente numa luta sem quartel e sem esperança na defesa do seu Rei (o Rei do Sião), da sua religião (o catolicismo) e da sua casa (Ayutthaya). A aldeia portuguesa situava-se fora de muralhas e tinha como edifícios axiais o templo dominicano, a igreja franciscana e o seminário-templo dos Jesuítas. Quando a sorte se inverteu contra Portugal em meados do século XVII e um a um caíram os grandes centros da actividade portuguesa na Insulíndia, populações católicas luso-descendentes de Celebes e Malaca afluíram a Ayutthaya em busca de segurança. A população do Ban Protukét ascendeu a 4000 ou 5000 pessoas devidamente comandadas por um Capitão eleito pelo povo cristão e confirmado pela corte siamesa.

Evocação de uma das glórias militares portuguesas em terras do Sião

A Este do Ban Protukét, na margem oposta do rio Chao Phrya, situava-se a aldeia japonesa, quase inteiramente integrada por católicos fugidos às perseguições anti-cristãs do Japão dos Tokugawa. A Oeste, encontrava-se o seminário-igreja de Saint Joseph, que os padres missionários franceses haviam estabelecido na década de sessenta do século XVII após inúteis tentativas de submissão dos portugueses. Os franceses, coitados, com ou sem bula papal, pouco ou nada conseguiram fazer no Sião e resignaram-se a intrigar junto da Santa Sé, da corte do Rei Sol e dos reis siameses contra aquela gente que recusava trair a fidelidade ao Padroado. Como lembrou recentemente Alain Forest, a missão francesa no Sião entreteve-se em receber e formar catecistas vietnamitas no Sião e a ensinar a língua vietnamita aos sacerdotes franceses. Nunca foram obedecidos nem estimados pelos católicos siameses, pois desde cedo exibiram uma confrangedora ignorância sobre as características do meio e dos mecannismos profundos da organização social siamesa, para além de confundirem o seu papel de missionários com os objectivos da diplomacia francesa.

Dois luso-descendentes

Ora, quando nas primeiras décadas do século XVIII Ayutthaya perdeu a força de grande potência no Sudeste-Asiático e emergiu a belicosa e expansionista dinastia Konbaung na Birmânia, as populações do mandala siamês foram expostas a um inimigo que fazia tábua-rasa da cultura política das relações internacionais da região e que exercia a guerra como única modalidade da acção externa. O fundador dessa dinastia, Alaungpaya, conhecido pelos métodos brutais de aniquilamento dos estados vizinhos, após reduzir a cinzas o Pegú, invadiu o Sião em 1759 e assediou Ayutthaya. A investida, brutal e sem qualquer respeito pelas convenções da guerra, plasmadas pela doutrina budista que aconselhava batalhas-torneio entre voluntários, em vez de choque entre exércitos, deixou os siameses aterrorizados. A guerra que o gigantesco exército birmanês trazia era inteiramente nova. Não visava troféus, mas o aniquilamento completo do adversário, lançava mão de massacres sistemáticos, destruição integral de cidades, vilas e aldeias e redução à escravidão dos sobreviventes; em suma, uma guerra norteada pelo intuito de infundir terror e desertificar regiões. Em 1760, já às portas de Ayutthaya, o exército birmanês foi detido precisamente no Bandel Português. A oposição que encontraram foi tão dura, as perdas dos atacantes tão grandes que Alaungpaya deu instruções de retirada. Nas últimas horas, já as suas tropas retiravam desordenadamente ante a contra-ofensiva dos portugueses, o rei birmanês caiu por terra, fulminado pelos estilhaços de uma peça de artilharia que explodira ao fazer fogo sobre o Ban Protukét. Ayutthaya salvara-se pela resistência e grande sangue frio dos católicos ante o mar birmanês.

Os restos do grande templo no coração de Ayutthaya

Os birmaneses lamberam as feridas e reorganizaram-se. Em 1765, um imenso exército, agora comandado por Hsinbyushin, filho de Alaungpaya, invadiu de novo o Sião disposto a reduzir a pó a capital do Sião. A cidade estava exangue, o seu comércio declinante e lutas intestinas haviam enfraquecido Ayutthaya, pelo que, de novo, os birmaneses avançaram sem dificuldade até às muralhas da grande capital. Os bastiões foram guarnecidos com católicos do Ban Protukét, mas os restantes habitantes do bandel, fora de muralhas e expostos a grande perigo, recusaram-se abandonar os seus templos e aí se barricaram. Resistiram a todas as investidas birmaneses, causando-lhes milhares de mortos. Incapazes de derrotar os católicos, atacaram o aldeamento japonês na outra margem, reduzindo-o a escombros, destruindo depois as feitorias inglesa e holandesa da VOC. Muitos japoneses, holandeses e ingleses atravessaram a nado o rio e procuraram refúgio na aldeia portuguesa. A esta afluiram também muitos peguanos e chineses que tinham os seus bairros nas proximidades. Ayutthaya ardia e os soldados siameses já não obedeciam, fugindo para evitar o extermínio. O Ban Protukét resistiu durante seis meses a bombardeamento de artilharia e ataques frontais da infantaria, elefantes e cavalaria birmanesas. Nos últimos dias de Março de 1767, sem víveres e sem munições, os portugueses aceitaram depor armas. Era o último reduto de resistência. Ao contrário das promessas do inimigo, mal entregaram as armas, homens, mulheres e crianças foram severamente agredidos, alguns mortos ali mesmo e os restantes reduzidos à escravidão.

Monge budista. Wat Phra Ram (Templo de Buda-Rei)

Hoje, junto do cemitério onde jazem cerca de 200 restos mortais de luso-siameses, evoquei essa tragédia. Aquela gente lutou até ao último grão de pólvora e não vacilou ao decidir lutar pela sua liberdade. Uma lição de heroísmo que integra as mais vibrantes páginas da saga portuguesa nos confins desta Ásia que celebrará proximamente a aliança na paz e na guerra entre dois povos. Os luso-siamses terão compreendido perfeitamente o sentido daquela façanha que hoje evocámos. Os tailandeses, todos falando um excelente português, compreenderam, também eles, que os portugueses não vieram aqui apenas para fazer business pois, chegada a hora decisiva, lutaram ombro a ombro com os siameses na defesa da terra comum, não deixaram cair a bandeira e não tentaram, como outros, fugir e salvar os cabedais. Morreram pela sua liberdade; é tudo. Isto merecia uma coprodução épica luso-tailandesa ou o nome de uma avenida lisboeta: Avenida dos Heróis de Ayutthaya.Há quem pretenda espezinhar, ridicularizar e até fazer esquecer aos portugueses a grandeza e a honra de o serem. Só quem não for digno do nome de Portugal pode persistir em negar a esta nação as mais vibrantes páginas da história da nossa civilização.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Realismo lírico: amor proletário

Seis da tarde, Banguecoque. Dois trabalhadores da construção civil. Ele cabeceando de sono, um sono semi-acordado martirizado pelos solavancos do carro, pelo barulho do tráfego e pelo calor inclemente do sol. Ela, sem sapatos e com meias de criança, lenço sobre o rosto, dormindo e confiada na mão protectora que a ampara.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Umbigos colonialistas

As comunidades ocidentais "expatriadas", como aqui se diz, reunem-se uma ou duas vezes por ano: por altura do Ano Novo e por ocasião das festas nacionais dos países. Há comunidades fortes e influentes, ricas, empreendedoras - dinamarqueses, suecos, alemães, italianos, britânicos - como as há tão discretas e invisíveis que dir-se-ia não existirem. Há aquelas que se unem para patrocinar edições de obras sobre as relações históricas entre o Sião e os seus países de origem, animar exposições de artes, promover encontros e, até, abrirem restaurantes e pub's. Há, finalmente, aquelas que se encontram para matar saudades do idioma e para pôr em dia a má-língua. Dizia-me há tempos um grego, meu companheiro de escola de língua thai, que evitava participar nesses encontros, pois a miniatural confraria dos seus conterrâneos parecia ter-se especializado em dizer mal de tudo o que à Grécia e à Tailândia respeitava.
Os europeus possuem destas coisas. Querem sair da Europa a todo o transe, não gostam do clima frio, das chuvas e das neves, da água gélida das praias, da vida cinzenta, das intrigas do trabalho, das arrelias da política. Contam ansiosamente os meses, as semanas e os dias que precedem as férias de verão para partirem para os trópicos, mas quando se fixam nos trópicos fecham-se nas suas referências e encasulam-se numa blindagem de preconceitos contra a sociedade que os acolheu, ou desgastam-se em estéreis lutas intestinas. Vivem fora, olham de fora, criticam, desprezam, mas gostam de aqui viver. Europeus há aqui que nestas terras vivem há décadas e não falam meia dúzia de palavras em tailandês, não lêem uma linha, nunca entraram num museu, num templo, não sabem o significado dos códigos morais e de etiqueta locais, não passam do bife com batatas fritas e ovo a cavalo. Uma vizinha canadiana teve o atrevimento de se zangar com a sua mulher-a-dias porque esta não compreendera o significado do dia de natal e aparecera, como sempre o faz, para limpar a casa no dia 25 de Dezembro. Outro, suíço, gabou-se ter sobrevivido dez anos com recurso a linguagem gestual.
Inventaram um mundo. O fenómeno não é tailandês; é uma velha tendência colonial que já Roland Meyer, que assinava Komlach, detectara no Camboja do Protectorado Francês dos anos Vinte do século passado: "os brancos sem raízes que amaldiçoam e ignoram o Camboja desde os confins do seu bairro europeu, onde preservam as pueris manias da sua vida dita civilizada". No fundo, querem é criados, passar por grandes senhores, exibir status. O Ocidente só perde, pois nada sabe sobre o Oriente e o que julga saber não passa de fantasias colonialistas.Diverte-me ouvir os colonialistas falarem aos tailandeses de "Lord Buda", quando os thais não sabem o que Buda significa, pois aqui é referido como Phraá. Rio-me das referências que fazem a Luís XIV, a Platão, a Proust, a Degas, a Brecht e ao estilo barroco. Os thais sabem tanto disso como nós de Phra Narai, Sunthorn Phu, Kukrit Pramoj, Vajrayana, o Ramakien, o teatro likay.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Curiosidades tailandesas: sem medos e sem as vergonhas ocidentais

Sou distraído, pelo que só recentemente me dei conta de uma prática aqui muito arreigada, interpretada como supino gesto de cavalheirismo. Na Tailândia, quando os casais se passeiam, os namorados/maridos insistem em transportar a mala do seu par. Já cheguei a ver oficiais de alta patente, carregados de medalhas, transportando airosamente nas mãos uma malinha cor-de-rosa com arreios dourados.
Todos os actos delicados passam por suphab (educação) ou nissay dii (bom comportamento), pelo que as senhoras ficam Kreng Jáy (agradecidas e em dívida) para com tais manifestações.
Não me atrevi violar ostensivamente a privacidade das pessoas, mas pelos dois exemplos fotografados [de costas] fica a sugestão. Aqui, marido e mulher vão juntos ao cabeleireiro e à manicure, enchem a casa e a cara de cremes e até parece que partilham o make-up. Enfim, um monumento à igualdade. Entre nós, saídos recentemente do neolítico, até se exigia que os homens cheirassem a cavalo e se rissem sobranceiramente das colónias e dos roll-one. O mundo é um espectáculo de diferenças.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Povo mágico, povo de mágicos

Os siameses pelam-se por astrologia, quirologia, adivinhação, magia, numerologia, nigromância e espiritismo. São, sem tirar, iguais aos gregos e romanos da Antiguidade, pois a cepa comum indo-ariana plasmada pelo sânscrito - essa língua universal do conhecimento isotérico - criou uma comum visão do mundo que cobriu um largo arco geográfico que ia do Sudeste-Asiático ao Tibre e só foi destruída pelo advento do cristianismo. Os thais são, assim, um "povo antigo", com um "conhecimento antigo" no qual não há fronteiras claras entre o racional e o irracional, o sagrado e o profano, o temporal e o espiritual, o mundo dos deuses e o mundo dos homens. Tudo para eles é entendido como manifestação de poderes imanentes que não podem ser contrariados, mas apenas atenuados pela elevação espiritual de cada um. Ao contrário do que deste entendimento da vida escreveram duas ou três gerações de positivistas europeus, o conhecimento oculto não é fonte de alienação, mas segurança, não gera o fatalismo, mas fortalece os indivíduos nas afições, não semeia o desespero, mas alimenta a esperança. Quando confrontados com grandes desastres, os thais lançam mão de todos os recursos, falam com todos os deuses, franqueiam todos os templos - budistas, protestantes, católicos, jainistas, hindús - e pedem ajuda. A lógica parece ser: quantos mais deuses tiver do meu lado, mais facilmente poderei sair desta aflição. Este ecletismo e sincretismo religiosos são bem patentes. As pessoas trazem consigo, pendendo no peito, amuletos pré-budistas, imagens do Buda e crucifixos. Depois, tatuam-se com fórmulas propiciatórias que outrora se dizia permitirem imunidade contra os espíritos malignos e facultavam ora a invisibilidade, ora repeliam as armas dos inimigos.

Um dos filões mais produtivos da indústria cinematográfica local é, como não poderia deixar de ser, as fitas sobre Pí (espíritos) e o tema de conversa mais apetecido, para além da comida, são questões de natureza religiosa. As pessoas lêem avidamente, tal como no Ocidente medieval acontecia, textos edificantes: vidas de monges, jatakas do Buda - vidas anteriores do Iluminado - experiências de meditação nos "templos da floresta", sonhos e até viagens ao mundo do além.


Um dos fascínios dos thais é a magia. A patetice de alguns europeus interpreta este fascínio como demonstração de infantilidade. Como povo lúdico, os thais encontram na magia um divertido jogo de fintar as "leis naturais", ludibriar os sentidos, brincar com as certezas de cada um. Porém, mais profundo que o inocente divertimento, demonstra-se a Annica (ou impermanência), que é uma das grandes certezas do budismo. Tudo está em mudança e até as leis naturais podem ser contrariadas. Escandalizavam-se os missionários católicos franceses com o Rei Taksin (1767-1782) quando este lhes afirmava que se havia finalmente libertado das leis da atracção e que podia voar.
Em Banguecoque há centenas de bancas de magia. Vai-se ao astrólogo, ao vidente, ao intérprete de sonhos como se vai ao médico. Ali correm milhões dos bolsos aflitos, mas também correm milhões pela atracção pelo desconhecido. Recentemente, a magia também se colocou ao serviço dos turistas. Com um grande sorriso, os mágicos oferecem nas ruas sessões de magia ao alcance de qualquer um e, terminada a exibição, vendem os produtos e os segredos de mágica aos farangues (estrangeiros brancos). O mágico da foto realizou a proeza de vender em cinco minutos 50 Euro de produtos a três europeus extasiados. É o caminho das estrelas.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Dolorosas novas

Encontrei ontem doloroso testemunho da tragédia portuguesa de 1908. Datada de 15 de Fevereiro - uma semana após o regicídio - assinada por D. Manuel II, a carta anunciava ao Rei Chulalongkorn do Sião o passamento do Rei D. Carlos I e do Príncipe Real D. Luís Filipe. Mais que uma breve e protocolar nota informativa, presente-se a dor do novo e jovem monarca ao dar a triste notícia a um chefe de Estado que vivia no outro lado do mundo, mas que tivera a oportunidade de conhecer pessoalmente em 1897, quando Chulalongkorn por Lisboa passou em digressão oficial. Os arquivos tailandeses estão, como verifico, carregados de testemunhos portugueses, aqui encontrado valiosos documentos que em Lisboa, na voragem de insensibilidade, criminosa incúria e facciosismo se perderam para sempre. Que vergonha ter de vir à Tailândia para encontrar documentação portuguesa, escrita em português e emitida pelo Estado Português.

(...) "As mortes do meu muito amado e prezado pai e do meu muito querido irmão, vítimas de abominável assassinato deixaram-me entregue, bem assim à totalidade da Nação Portuguesa, na mais profunda aflição. (...) O interesse que VM sempre mostrou por toda a minha família é consoladora esperança de que Vossa Majestade tomará uma viva parte na acerba mágoa que me causaram tão cruéis golpes. Chamado n'estas tristes circunstâncias, pela ordem da sucessão e na continuidade das leis do Reino de Portugal, ao trono de meus antepassados, rogo a Vossa Majestade haja dispensar-me os mesmos sentimentos de afecto que dedicava ao Augusto Monarca falecido e de ficar certo do vivo desejo que tenho de estreitar cada vez mais as relações de boa inteligência que felizmente subsistem entre os nossos países (...)".

Dois anos depois, a república era imposta a tiros de canhão e as relações luso-siamesas eclipsaram-se, passando a representação consular para mãos de italianos pelas décadas de 20 e 30, até à chegada de um português nas vésperas da Segunda Guerra Mundial. Portugal perdeu, então, a última oportunidade de manter no Sião o estatuto de potência aliada, a mais antiga e respeitada, que os siameses sempre lhe haviam tributado. O estado de coisas foi tão confrangedor que um dia, por volta de 1911, a polícia siamesa entrou pelo nosso consulado adentro para questionar os residentes a razão "daquela bandeira que ali puseram no jardim". Referiam-se, claro, à verde-rubra que ninguém conhecia e que Lisboa não tivera sequer a sensatez de anunciar aos países com os quais mantinha relações diplomáticas. Coisas do amadorismo de uma república que se vai celebrar !

sábado, 9 de janeiro de 2010

História desconhecida dos portugueses na Ásia: os portugueses que dominaram Hong Kong


Clerk's of Councils, ou seja, Secretários Gerais da Colónia, José Maria de Almada e Castro e seu irmão Leonardo de Almada e Castro ocuparam durante décadas a terceira posição na hierarquia administrativa de Hong Kong e foram decisivos para a moldagem institucional da mais importante colónia da coroa britânica no extremo-Oriente. Conselheiros de John Bowring, governador de Hong Kong e embaixador incumbido de negociar o primeiro "tratado desigual" com o Sião em 1859, mantiveram-se como influentes figuras e, depois, o clã Castro ocupou relevantes posições até vésperas da Segunda Guerra Mundial. Não se tratou de caso isolado. Já antes da ascensão dos Castro, outro português, Alexandre Grande-Pré, ocupara as funções de Secretário da Colónia nos conturbados anos 40, ou seja, imediatamente após a cedência de Hong Kong ao Reino Unido, no desfecho da Primeira Guerra do Ópio. Grande-Pré foi depois comandante geral da polícia.
Os britânicos, tal como acontecera em Penangue em finais do século XVIII e em Singapura no primeiro quartel do século XIX, tentaram compreender o funcionamento e aplicar o modelo português, tido por mais experiente e alicerçado num profundo conhecimento dos modos e práticas asiáticos.
Hong Kong fazia parte, em 1848, do "império-sombra" português na Ásia. Ali funcionavam três escolas católicas - uma para rapazes europeus, leccionando em português e inglês; outra para raparigas e outra para chineses - e o ensino aí praticado era considerado modelar, pois desenvolvido por "scholars" (1). Em finais do século XIX, entre 10.000 britânicos e estrangeiros vivendo na cidade, 1.263 eram portugueses; ou seja, 12% de elite da colónia, pois que a massa dos quase 200.000 chineses ocupava funções modestas e detinha acesso limitado à engrenagem do poder.
Não deixa de ser sintomático o facto de Portugal abrir o primeiro consulado em Hong Kong antes de quaisquer outras potências europeias presentes na Ásia e, também, o facto do Sião ter aberto consulado em Macau anos antes de nomear um representante em Hong Kong. No trabalho que realizo detecto outra curiosidade: a chegada ao Sião, nas décadas de 60, 70 e 80 de muitos portugueses de Macau, fez-se através de Hong Kong; ou seja, Hong Kong era utilizado como agente difusor da rede informal de poder que os portugueses possuíam há muito. Positivamente, os portugueses viviam dentro do aparelho britânico, dominavam-lhe as fragilidades e tiravam partido da força britânica para se candidatarem a concursos para lugares de conselheiros junto da corte siamesa.
A defesa de Hong Kong foi, também, desde os primeiros momentos da colonização britânica, entregue a portugueses. Ao criar-se o Corpo de Voluntários, em 1854 - sintomaticamente durante a governação de Bowring - com a incumbência de proteger a cidade e manter a ordem pública, o número de portugueses fardados e armados atingia 15% dos efectivos. Os Voluntários Portugueses mantiveram-se como força relevante do dispositivo militar da colónia até à invasão japonesa de Dezembro de 1941 e muitos pagaram com a vida a defesa da sua terra, caso muito similar ao dos luso-descendentes na Malaia Britânica (actual Malásia), que foram notados pela bravura que demonstraram ao longo dos anos de guerrilha anti-nipónica (1942-45). Igualmente em Xangai se constituiu um Corpo de Voluntários Portugueses, que executava tarefas de vigilância e manutenção da ordem dentro do perímetro da Concessão Internacional.
Para todos quantos cultivam o miserabilismo como princípio para a análise da presença recente portuguesa nesta paragens, estes curtos apontamentos surgem como uma provocação. O propósito não é, evidentemente, provocar, mas contrariar lugares-comuns e essa tremenda inibição que tem feito de nós e da nossa historiografia um caso perdido e digno de piedade no triunfalismo historiográfico que domina a visão anglo-saxónica. Há muito que fazer e investigar, mas este é, creio, o caminho certo.

(1) ENDACOTT, G.B. A history of Hong Kong. London: Oxford Press, 1964

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Anna Leonowens era portuguesa

De Susan Morgan, Bombay Anna é, indiscutivelmente, o desvelar de um mistério que a biografada e sua descendência quiseram sepultar. Bristowe, o maior conhecedor da vida de Leonowens já o dissera há muitos anos: essa Anna não era, não podia ter sido britânica de nascimento. Anna Leonowens, a famosa governanta do Rei do Sião que inspirou o clássico musical de Hollywood The King and I, com Deborah Kerr e Yul Brynner, era, afinal, uma pobre rapariguinha meia-casta nascida em Bombaim. O avô de Anna seria um desses deserdados de poucas letras nascido num qualquer deprimido pequeno mundo rural inglês de inícios da Revolução Industrial que Chegara à Índia sem eira e alistara-se como praça no exército da British East India Company. Ali conheceu na "Cidade Negra" (ou Cidade Nativa) uma rapariga Topass (1) - isto é, euro-asiática católica de ascendência portuguesa - com quem contraiu matrimónio. Desse casamento que teve desfecho na prematura morte do soldado, nasceu Mary Anne, mãe de Anna "Leonowens". Esta, casou aos treze anos com um sargento sapador, mas logo enviuvou. Desse casamento vieram ao mundo duas raparigas, tendo Anna [Harriett Edwards] nascido semanas após a morte do progenitor.

Leonowens construiu várias identidades ao longo da vida. Nas memórias que deixou, afirmou ter nascido em Gales no seio de uma família com cabedais e que o seu pai - "oficial do exército" - a mandara vir logo que concluída esmerada educação. Se Leonowens recebeu alguma educação foi nas escolas regimentais. Viva, curiosa e extremamente inteligente - falava fluentemente quatro línguas e chegou a ser reconhecida como autoridade em sanscritologia - era uma força da natureza. Compreende-se que, ao chegar a hora do triunfo e do reconhecimento - foi sucessivamente preceptora dos filhos de Rama IV do Sião, jornalista-viajante e conferencista, militante da causa abolicionista e no fim da vida uma líder sufragista - tentasse ocultar as suas raízes.

Casou Anna com um homem obscuro, oriundo da classe média irlandesa protestante dizimada pelas fomes de 1840. Este Leon Owens morreu prematuramente. Fora funcionáro público em Bombaim mas quis mudar de vida e candidatou-se a gerente de um modestíssimo hotel em Pinangue (Penang). Ao falecer naquela que era conhecida como a "tumba do homem branco", deixou mulher e dois filhos na maisextrema penúria. Eis uma revelação que Susan Morgan não desenvolve. Pinangue é uma ilha situada no estreito de Malaca. Pertencendo ao sultão de Kedah, foi comprada pela Honorable Company em 1786, passando a integrar as possessões dos Straits Settlements. Ali, o Capitão Francis Light, oficial da EIC lançou os caboucos de uma cidade (George Town). Pinangue era despovoada, pelo que Light trouxe da península malaia muitos "portugueses" de Kedah e Malaca. Casou com uma luso-descendente e Pinangue passou a ser mais um bandel católico das lusotopias asiáticas que floresceram nesta parte do mundo entre os séculos XVI e XIX. Parece que Anna quis apagar esse registo e essa ligação. Nascera em Bombaim no seio do enclave meia-casta católico, mudou-se para Pinangue, uma ilha de luso-descendentes antes de desembarcar em Singapura, a nova pérola da Coroa. Ora, Singapura era, também, uma cidade feita por portugueses. Quando Raffles aí se instalou e içou a Union Jack, convidou muitos luso-descendentes de Pukhet e Malaca, mas também de Pinangue. Parece que tudo bate certo, mas Anna não queria ser tida por católica, muito menos por euro-asiática.


Não se sabe exactamente como se insinuou junto do cônsul do Sião em Singapura, mas se o fez terá invocado o seu nascimento britânico, pois o lugar de professora de inglês dos filhos do Rei requeria uma dama, não uma pobre meia-casta. Compreendo, agora, as amargas, injustas e depreciativas palavras que Anna escreveu a respeito dos luso-siameses de Banguecoque. Queria varrer da memória as suas origens, não se queria com eles identificar. Era um medo profundo esse de poder ser descoberta por aqueles cujo contacto evitava; ou seja, aqueles que lhe lembravam a parte oculta da sua identidade e a sua origem mestiça.

Depois de alguns anos no Sião, mudou de ares e tornou-se uma celebridade dos salões e academias da América do Norte e Europa. Era já Madame Leonowens, rica, culta, influente, pelo que destruiu toda a documentação e inventou uma vida. Um seu sobrinho neto chegou aos píncaros da popularidade. William Henry Pratt passou à história com o nome artístico de Boris Karloff e ainda é, por antonomásia, o Drácula das fitas do cinema a preto e branco. Boris Karloff, sobrinho neto de uma pobre rapariga luso-indiana de Bombaim.
MORGAN, Susan. Bombay Anna: The Real Story and Remarkable Adventures of the King and I Governess. Los Angeles: University of California Press, 2008.